OPINIÃO | VICTOR RUI DORES: Sobre Tourada à corda – a bandeira de um povo

 




Sobre Tourada à corda – a bandeira de um povo,

de José Pedro Lima e Edgardo Vieira     

                                                                              

            Tourada à corda – a bandeira de um povo (Tursicon Editora, 2023), com texto de José Paulo Lima e fotografia de Edgardo Vieira, é o resultado de 10 anos de trabalho em termos de pesquisa, investigação e recolha de depoimentos. Trata-se de uma investigação histórica baseada em várias fontes bibliográficas e orais, focando todo o historial da tourada à corda na ilha Terceira e sua evolução ao longo dos tempos, por um lado, e, por outro, é-nos dado uma perspetiva muito completa sobre os atores envolvidos nesta forma de tauromaquia popular: os ganaderos, os pastores e os capinhas.

De resto, os referidos são reincidentes pois que, em 2014, haviam dado à estampa o livro Ilha Terceira, o lugar atlântico do toiro (BLU edições), com Prefácio de Adolfo Ribeiro Lima.




            Não é impunemente que se viveu e cresceu num ambiente agrícola e se possui uma licenciatura e um doutoramento tendo o toiro bravo como referência. Por isso, bem documentado e informado, José Paulo Lima dá ao que escreve tratamento criterioso e meticuloso, ele que, aficionado pela festa brava e com formação médico-veterinária, possui a capacidade de informar, esclarecer, decifrar e avaliar, sabendo-se que é muito escassa a literatura taurina nos Açores. Recorde-se que só em 1622, no período sobre domínio dos castelhanos, é que temos a primeira citação do ato de correr toiros, aquando das celebrações de canonização de S. Francisco Xavier e de Santo Inácio de Loyola.

            Com avisado prefácio de Francisco Maduro-Dias, Tourada à corda – a bandeira de um povo é, pois, um estudo aprofundadíssimo sobre o toiro bravo e as touradas à corda, nas suas componentes histórica e tauromáquica, cultural e religiosa, antropológica e social, ambiental e científica, sociológica e etnográfica. E, nesta matéria, este livro vem complementar e acrescentar mais informação e conhecimento em relação aos estudos de Pedro Merelim sobre a tauromaquia terceirense. Por outro lado, José Paulo Lima recordando alguns dos mais famosos e icónicos toiros que fizeram história e são hoje parte do imaginário terceirense, traça, para memória futura, bem elaborados perfis biográficos de pastores, criadores de toiros e capinhas. Fá-lo contando histórias e com grande fluidez narrativa.

            Para ilustrar tudo isto, Edgardo Vieira, dotado de apurada sensibilidade, capta, em fotos tecnicamente perfeitas e esteticamente muito belas, aqueles momentos únicos e irrepetíveis ligados à festa brava. Com uma câmara na mão, ele é mais do que um fotojornalista, tornando-se no historiador desse instante.

Uma palavra de apreço para Liduíno Borba, empresário, autor, editor e excelente criatura que, numa linha de contínua e continuada pesquisa, continua a editar, com reconhecido mérito, livros sobre historiografia local e literatura popular. A sua Turiscon Editora publicou até agora qualquer coisa como 102 títulos, sendo que 60 são da sua autoria! É obra!

  Tourada à corda – a bandeira de um povo constitui, a partir de agora, um oportuno e importante contributo para se perceber do que falamos quando falamos da tauromaquia terceirense.

A Terceira marca a diferença, porque possui uma tauromaquia sui generis: contrariamente ao que acontece noutras regiões portuguesas, naquela ilha a aficion está essencialmente centrada no toiro. Os terceirenses identificam-se com o toiro de lide. Mais do que o cartel, o que para este povo interessa é a bravura, a casta e a nobreza do animal, a energia da sua arrancada e a lealdade da sua investida. Por isso qualquer toureiro ou cavaleiro que à Terceira (ou à Graciosa, ou a São Jorge) venha atuar sabe, de antemão, que não está perante turistas, mas perante gente com uma cultura do toiro. Que não restem dúvidas: a Terceira tem aficion taurina à escala mundial. Daí que os aplausos ou os apupos tenham sempre, naquela aficionada ilha, uma razão de ser.

Bem sei que dificilmente se poderá gostar de toiros quando não se está por dentro de uma tradição tauromáquica. Aceito os argumentos dos que não gostam do espetáculo taurino, mas há que entender esta forma de cultura ancestral. Ser a favor ou ser contra as touradas não são necessariamente duas posições irreconciliáveis.

Tomemos, como exemplo, o fenómeno tauromáquico terceirense, e vamos aos números: a ilha Terceira, que oferece mais de 200 touradas à corda por ano e uma mancheia de touradas de praça, tentas e garraiadas, possui mais de 2.000 cabeças de gado bravo, e à volta de 20 ganadarias que ocupam cerca de 11.000 alqueires, área que representa cerca de 3,5% da ilha, o que corresponde a uma mais-valia ambiental, pois que estas ganadarias são autênticas “reservas biológicas”. Ou seja, sem essas ganadarias, a Terceira não possuiria as manchas endémicas que hoje ostenta. Logo, o ganadero é amigo da ecologia e o toiro é amigo do ambiente.

 Há que perceber que o toiro é um animal diferente, sendo selecionado geneticamente para a bravura. Representando o mitológico, o sagrado e o poder genésico, ser sacrificial (associado ao culto do Espírito Santo), o toiro, animal nobre e puro, vive no seu habitat natural, é um símbolo da conservação da natureza. E nestas áreas naturais ele é criado, livre e selvagem, sendo muitíssimo bem tratado (com amor) por ganadeiros, criadores, pastores e veterinários. O meu amigo Eduardo Dias, não aficionado e cientista de mérito, defendia há alguns anos, nas páginas do “Diário Insular”, que “a cultura taurina na Terceira apurou a consciência ambiental”.


Festas do Senhor Santo Cristo, 2023

Por último, mas não menos importante, é incontornável a questão económica, pois que uma tourada é uma grande fonte de rendimento com efeito multiplicador. José Paulo Lima lembra que o economista Tomás Dentinho estima que, em cada tourada, haverá um gasto por cada elemento do público na ordem dos 10 euros que vão desde o transporte, as guloseimas e aperitivos e o gasto nas tascas. Também nos é recordado que um outro economista, Domingos Borges, concluiu que a tauromaquia terá um peso na economia da Terceira na ordem dos 91, 3 milhões de euros, o equivalente a 2,47% do produto Interno Bruto dos Açores. É dinheiro que fica na Terceira: os custos das corridas, o aluguer dos toiros, a comida, o cervejame... (Seria interessante saber-se quantas toneladas de cerveja se bebe, em média, durante uma tourada… Isto para não falar das bifanas, das alcatras, da doçaria, dos gelados e guloseimas. Alguém quer fazer as contas por mim?).

Sim, a tourada constitui uma mola económica de extraordinária importância para a Terceira, “ilha toiresca” na expressão de Nemésio. Só falta mesmo que, num futuro próximo, a promovida “Rota do Toiro” venha a colher dividendos turísticos, o que até agora não aconteceu. A visita vale a pena pela espetacular beleza que oferece.

E depois vem o resto: o 5º toiro, o convívio, a diversão, a sociabilidade, o (re)encontro dos amigos, a dádiva, a partilha, os afetos, os namoricos…  Seria interessante a realização de um estudo sociológico que apurasse a (grande) percentagem de casamentos na Terceira que tiveram a sua génese nos derriços amorosos da tourada à corda. Durante décadas, o namoro, no intervalo dessas touradas, serviu de prelúdio ao casamento.

Tourada à corda – a bandeira de um povo aí fica como importante legado de uma tradição secular para as gerações vindouras. É uma homenagem e é uma declaração de amor ao toiro e à festa brava. E mais do que necessário, este é um livro absolutamente indispensável.

 


                                                                                                                                                                                                                                                                                    Victor Rui Dores




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