OPINIÃO | VICTOR RUI DORES | Pedro da Silveira e a cidade da Horta




Pedro da Silveira
e a cidade da Horta


Em Pedro da Silveira (Fajã Grande, ilha das Flores, 1922 – Lisboa, 2003) coexiste o poeta, o ficcionista, o ensaísta, o crítico literário, o historiador, o tradutor, o etnógrafo, o folclorista, enfim, o investigador. Alguns pesquisadores estudam neste momento o seu espólio e nele deparam com uma vasta colaboração dispersa em periódicos e revistas. E são imensos os inéditos que aguardam e terão em breve a devida publicação.

Mantive com este florentino, e ao longo de três décadas, uma quase afetuosa relação de camaradagem literária. Digo quase porque era sobejamente conhecido o carácter intempestivo do seu manifesto mau feitio… Era eu estudante na Faculdade de Letras de Lisboa, e conheci-o em 1977, numa das minhas peregrinações pela Biblioteca Nacional, onde ele era competente e zeloso funcionário. Com vastos conhecimentos e (miúda) erudição, dele recebi incentivos, sugestões, referências biobibliográficas e informações preciosas para as minhas pesquisas e, durante os cinco anos que permaneci na capital e dava início a um percurso de escrita, ele foi, simultaneamente, meu “maître à penser” e o meu mais feroz crítico...

À época eu já conhecia a sua obra poética, nomeadamente A Ilha e o Mundo (Centro Bibliográfico, Lisboa, 1953) e Sinais de Oeste (Textos Vértice, Coimbra, 1962), livros que constituíram um valente abanão no impressionismo contemplativo que então caracterizava a poesia açoriana. Regressado aos Açores para iniciar carreira docente, mantive, durante alguns anos com Pedro da Silveira, abundante correspondência (para ele carta recebida era carta que sempre respondia com desusada generosidade), e nunca deixei de ser seu atento discípulo. Anos mais tarde encontrámo-nos em vários congressos e fóruns de debate. Fui seu companheiro de viagem e de quarto aquando da 49ª Feira Mundial do Livro de Frankfurt, integrados numa comitiva de escritores sob o patrocínio da Direção Regional de Cultura. E não esquecerei outros Encontros de Escritores: na Maia, ilha de São Miguel, e nos Estados Unidos da América (Califórnia), promovidos respetivamente por Daniel de Sá e Diniz Borges, e ainda outros eventos de índole cultural ocorridos em Lisboa e ilhas Terceira e São Jorge.




O fascínio pela História, pela sua compreensão e pelo gosto de assumir a sua condição insular, inserido nesse contexto físico e social próprio que são os Açores, levou Pedro da Silveira a escrever o notável poema “Horta: quase réquiem” (inserto em Sinais de Oeste), que capta a essência da Horta em termos de vivências de um passado carvoeiro, marítimo, mercantil, telegráfico e cosmopolita:

(…) “Como isto foi grande, dinâmico, mercantil, aventureiro! / Homens de todas as raças no porto da Horta, / todas as línguas e bandeiras/ no porto da Horta. / 178 navios baleeiros num dia! / E a esquadra do Czar./ A Home Fleet./ E navios à carga, vozes, gritos, /o gemer dos guindastes”
(…)
(…) (“E isto era o rosto ancorado/ da civilização! / Era a mais alegre, a maior/ cidade pequena do Mundo!/ Era a riqueza de Londres/ E de Nova York!/ Era o requinte de Paris, o luxo/ De Sanpetersburgo!/ Todos mercavam, vendiam. /Embarcavam. /Tornavam).” (…)

Mas o poema não se fica por esta evocação melancólica de uma cidade outrora dinâmica e aberta ao mundo. Ao retratar o ciclo descendente da Horta, Pedro da Silveira lança sobre ela olhares muito críticos, já que a urbe tarda (isto nos anos 40 do século passado) em libertar-se dos valores que ficaram cristalizados no passado, impedindo-a de perseguir livremente o futuro que deseja. Mesmo assim o poeta mostra-se esperançado num novo renascimento da Horta: (…) “o passado que esperas/ em futuro renasça/ de nem sabes que frotas/ ou esquadras fantasmas…”.

A poesia de Pedro da Silveira, “o mais ocidental poeta europeu”, já garantiu uma posição de destaque no quadro da melhor poesia portuguesa. Haja agora, 100 anos depois do seu nascimento, quem o saiba (re)ler.


Victor Rui Dores







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