OPINIÃO | VICTOR RUI DORES | Um poeta cavalheiro chamado Eduíno de Jesus









Um poeta cavalheiro
chamado Eduíno de Jesus



“Poesia, minha amante” (pág. 43).



A caminho dos 96 anos de idade e com 70 de carreira literária, Eduíno de Jesus, micaelense dos Arrifes e açoriano do mundo, continua igual a si próprio: agudo e arguto observador da realidade, homem da cultura e da finura, minucioso e reflexivo, bem formado e informado, intelectual gentil, generoso e fraterno, autor do pensamento vigilante e de uma ironia requintadíssima que só pode ser sinal de inteligência e sabedoria.

Poeta perfeccionista de agudíssima sensibilidade e apreciáveis recursos sensoriais, ensaísta igualmente exigente e de primeiríssima água – dos que se escusam a modas e traficâncias e escrevem sem pressas e sem ânsias editoriais. Também crítico literário e de artes plásticas, conferencista, prefaciador, autor teatral, interlocutor precioso e amabilíssimo, dele acabo de ler o livro Como tenuíssima espuma de luz – Poética Fragmentária (Nona Poesia, 2021).

Poética fragmentária e poemas de circunstância. Mas por mais que alguns façam crer o contrário, tenho para mim que todos os poemas são de circunstância. É só preciso que as circunstâncias sejam as do poeta: a circunstância exterior deve coincidir com a circunstância interior, como se o poeta a tivesse produzido.

Nesta ordem de ideias, é de circunstância o referido livro de Eduíno de Jesus. Livro de circunstância porque forjado à luz da observação do real, do vivido e do sentido, num jogo do mítico e do simbólico. Pesquisador subtil de realidades visíveis e invisíveis, o autor envereda por uma poética da intimidade, da sensualidade, da expressão amorosa e da contemplação erótica, a que os desenhos de Artur Bual dão força e expressão. Esta intimidade, esta “poesia do corpo” não é mais do que a relação que o sujeito estabelece com a sua escrita: é a sua atitude (vigilante) em relação às palavras, a sua maneira de as acolher e de as convocar, de as surpreender e de se surpreender com elas. Os poemas “Gaia ciência”, “Artesania poética” e “As palavras” são disso um bom exemplo.

Por conseguinte, herdeiro assumido da tradição oral, Eduíno de Jesus escreve afetos, emoções e sentimentos reabilitando a palavra poética e o sentido mágico do poema. E fala sobre as encruzilhadas da vida e sobre mitologias do quotidiano. E, com mestria, busca o silêncio que há nas palavras. E tudo isto através de versos certeiros e harmoniosos. Porque a sua poesia é isso mesmo: a busca de um silêncio e de uma harmonia em tempo de muitos ruídos e de múltiplas dissonâncias.

Ao escrever poesia, Eduíno de Jesus mantém uma relação com o tecido literário, poético,
cultural e civilizacional que a precede. E, na minha opinião, é aqui que está o selo da modernidade da sua poesia (há mais de meio século que ele é apelidado de “poeta modernista”…). Por isso, esta é uma poesia de todos os tempos e de todos os lugares.

Este sentido de modernidade está na maneira hábil como Eduíno soube e sabe situar-se entre uma tradição literária e poética e uma renovação dessa mesma modernidade. É óbvio que alguns dos seus poemas denotam algum (neo)romantismo, mas Eduíno de Jesus está longe de ser um poeta romântico. Ele esteve por dentro das vanguardas literárias e artísticas, é dado a experimentações linguísticas, mas não é autor de ruturas nem de transgressões. É certo que bebeu fundo da fonte do Simbolismo, havendo quem o considere um dos mais significativos poetas simbolistas da “geração de 50” do século transato. E, no entanto, ele não é propriamente um simbolista “puro e duro”, nem tão pouco enveredou por um “simbolismo insular”, à maneira de Roberto de Mesquita. Apesar de uma ou outra influência, o Surrealismo e o Concretismo passam de raspão na sua poesia, onde nem tão pouco se vislumbram ressonâncias da “Presença” ou do Neo-Realismo (a arte social versus arte pura passam-lhe de largo).

Para mim Eduíno de Jesus é tão somente um imenso poeta. Isto é, um incansável trabalhador (artesão) da palavra. Um poeta lírico sui generis, profundamente humano, que observa o real e disseca a sua vida (a sua alma?) – como Vernet agarrado ao mastro do navio para estudar a tempestade…

Perante o enigma do real, o poeta dirige a sua atenção (nua e pura) não só para dizer o que o seu olhar vê, mas também para ordenar e exprimir (recriar) o caos interior, a vertigem do inumerável e do inexprimível. Daí que ele parta em busca do indizível.

Apreendendo a lição de Paul Verlaine (a musicalidade da palavra), Eduíno encontrou a sua própria voz, a sua linguagem, a sua “petimusique”. Por isso escreve com esmero técnico, apurado sentido estético e grande sensibilidade artística. Por isso os seus versos são de boa ressonância musical, prenhes de poeticidade e de sedutora prosódia. Ou seja, são envolventes e fascinantes e de grande beleza plástica e visual.

A propósito do que acima vem exposto, recomendo vivamente a leitura de Os Silos do Silêncio – Poesia (1948-2004), Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2005, livro que reúne a maior parte da poética de Eduíno e que é fundamental para quem quiser saber um pouco mais sobre o destino da vida humana no teatro do mundo.

Urge que, agora, ele (ou alguém por ele) recolha, para publicação imediata, o muito material ensaístico que tem inédito, mas que o seu grau de excessiva exigência e perfecionismo não deixa vir cá para fora…

Até lá, longa vida ao Eduíno de Jesus.




Victor Rui Dores





  




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