VICTOR RUI DORES | Da natureza belicosa de Natália Correia | OPINIÃO







Da natureza belicosa de Natália Correia


ao Carlos Alberto Moniz



Foi pela mão amiga de Carlos Alberto Moniz que, numa chuvosa noite de novembro de 1978, transpus, pela primeira vez, os umbrais do Botequim, criado e projetado pela escritora Natália Correia (1923-1993). O bar, situado no Largo da Graça, era então ponto nevrálgico da tertúlia lisboeta e da conspiração política.

Recém-chegado a Lisboa e deslumbrado com as magnificências da capital, eu era estudante da Faculdade de Letras de Lisboa e vivia o futuro como uma nova esperança. Orgulhava-me de ter publicado o meu primeiro livro de poesia um ano antes: Poemas de Fogo e Mar, resultado da crise sentimental e amorosa que marcara a minha adolescência terceirense… E, naquela noite, levava secretamente comigo, guardado no bolso da gabardine, um exemplar do dito livro para oferecer à “dona Natália”, essa força da natureza e verdadeira lenda viva.

Foi a de algum desapontamento a minha primeira impressão do Botequim, pois francamente julgava-o mais espaçoso. Mas, passados quase 50 anos, o que ainda guardo na memória é a densa fumarada daquele bar. Toda a gente ali fumava: políticos, militares, jornalistas, gente das artes e letras. Recordo a simpatia do empregado Bandola, as mesas, as cadeiras, o balcão alto, os estofos vermelhos, as gravuras nas paredes, o piano vertical (encostado à parede do lado direito) e, a pontificar o espaço, lá estava o pequeno busto – La Poésie – num pedestal elevado.

Natália fizera do Botequim a sua sala de visitas. Era ali que tinha encontro marcado com amigos e conhecidos. Dizia-se, da mulher Natália, ser insubmissa e insubordinada, egocêntrica e exuberante, polémica e contraditória. Sabia-se também que, afeita ao sensual e ao espiritual, transpirava liberdade, ousadia, paixão, cultura e justiça, ela que durante a ditadura fora a autora mais censurada em Portugal.

Usando vistosas écharpes, com a sua inseparável boquilha e quase sempre de copo de whisky na mão, Natália rejubilava e era o centro de todas as atenções, passeando-se de mesa em mesa – para lançar chistes, críticas e provocações à seleta clientela. E seletiva era a escritora, mantendo a porta do bar fechada e obrigando quem queria entrar a tocar à campainha. E a verdade é que só lá entrava quem ela queria.




Na altura eu já apreciava a poesia de Natália Correia. Ilhéu arrancado à ilha, ia descobrindo a minha açorianidade através dos versos natalianos:

Não sou daqui, mamei em peitos oceânicos
Minha mãe era ninfa, meu pai chuva de lava
Mestiça de onda e de enxofres vulcânicos
Sou de mim mesma pomba húmida e brava”.

Naquela noite, a anfitriã avistando o Carlos Alberto Moniz que comigo entrava no Botequim, e porque numa das mesas já lá estava um outro açoriano, Duarte Brás, logo anunciou, com expressivos requebros gestuais:

- Ora bem, isto vai ser noite para cantarmos a Lira e o Samacaio!

Aplausos da assistência.

Natália, que era toda pose e postura, aproximou-se, fitou-me desdenhosamente da cabeça aos pés e, após expelir uma baforada de fumo na minha direção, perguntou ao Carlos:

- Então quem temos hoje aqui?

- Um açoriano da ilha Graciosa, estudante universitário – respondeu o meu amigo.

Apresentei-me, nervoso, e timidamente ofereci o meu livrinho à grande Poeta.

Natália abriu o livro de relance, folheou-o, leu a dedicatória e, com um sorriso sarcástico estampado no rosto, perguntou-me:

-Que idade tem o menino?

- Vou a caminho dos 19 anos… – respondi, a medo.

Então Natália, do alto da sua altivez, disparou na sua voz cénica e tonitruante:

- Não é de se esperar grande coisa quando se está na idade da punheta poética…

E, dizendo isto, devolveu-me o livro e virou-me ostensivamente as costas.

Especado com o livro na mão, engoli em seco e, segundo o Carlos, fiquei vermelho que nem rocaz.

Apercebendo-se da minha atrapalhação, Natália estugou o passo, retrocedeu e, colocando a mão direita no meu ombro esquerdo, disse-me com indisfarçável coqueterie:

- Mas continue a escrever. Continue a escrever, que há-de lá chegar.

E, sub-repticiamente, retirou-me o livro da mão e levou-o consigo dirigindo-se ao balcão.

- Tiveste sorte, ela ficou com o teu livro… – disse-me Carlos ao ouvido.

Passei o resto da noite condoído e contristado… E só ao fim de dois whiskies é que arranjei ânimo para, fazendo coro com Natália, Carlos e Duarte, cantar a Lira e o Samacaio




Victor Rui Dores


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