OPINIÃO VITOR RUI DORES | A Força das Sentenças ou as memórias de um desmemoriado

 





A Força das Sentenças

ou as memórias de um desmemoriado

 

“Escondo-me na névoa baça e apalpo o nada, na esperança de encontrar outro eu, dali, daquele lado fosco, embaciado, e com os dias, as semanas e os meses, sem que encontre nada a que me agarrar”. (pág. 81)

 

            Pedro Almeida Maia, o mais cinematográfico dos escritores açorianos, soma e segue.

Deste autor, acabo de ler uma novela de particular interesse para a literatura e para a neurociência: A Força das Sentenças (On y va, 2023), obra vencedora do Prémio Literário Manuel Teixeira Gomes 2023 (em 120 trabalhos apresentados), lançado pela Câmara Municipal de Portimão com o objetivo de promover e estimular a criação literária.




            Aqui lemos a história de Penedo Quental, professor e escritor, a quem é diagnosticado a doença de Alzheimer, pouco tempo depois de enviuvar. Através de um intenso e perturbante monólogo interior, ele (o professor) vai escrevendo sobre o seu dia a dia na sua relação (conflituosa) com os outros: Sarah, a filha; Isaura, a governanta; Olália, a vizinha. Apreensivas e impotentes, elas vão assistindo à degradação e à descaracterização daquele homem em fase de progressivo estado de demência, com consequências devastadoras para a família. Como personagens secundárias, temos o sr. António da pastelaria, a médica Madalena Ataíde e os cuidadores Verónica e Bernardo.

Consciente da sua doença degenerativa, sentindo-se um “empecilho” para os outros, mas em estado de negação, Quental, dotado de sarcasmo e de sentido crítico, escreve e escreve-se. Com perseverança, obstinação e lucidez intermitente, numa desesperada tentativa de resolução de problemas interiores. Quiçá em forma de autopsicoterapia, e disso fazendo catarse. Sempre acompanhado de seu cão, que ora vai chamando de D´Artagnan, Aramis, Porthos ou Athos, o protagonista evoca memórias vividas e sentidas: a lembrança de Josefa, a mulher amada; a saudade do que ficou e/ou poderia ter acontecido; as vivências açorianas (foi docente na ilha de São Miguel) e africanas (Moçambique, a Guerra Colonial e a memória de ver matar e morrer, em páginas de tocante humanidade).

 “A esperança não morre, nós é que a ignoramos”, escreve o narrador (página 71). Atento ao que se passa à sua volta, ele vai assistindo a séries sobre animais na BBC, a partir das quais faz comparações com a sua situação clínica e tira conclusões:

Um atum pode nadar mais de sessenta quilómetros por dia, mas eu estava incapaz de dar um único passo na tela em branco em que se tornara a minha vida” (pág. 131).

Deitado numa cama de rede, ou no lar de idosos para onde mais tarde irá parar, divorciado da realidade e fazendo por esquecer o abismo da morte, ele mantém-se vivo com as lembranças do passado, partilhando sentimentos, estados de alma e sonhos, resultando notáveis descrições a partir destes.

Quental, procurando o eu no outro eu, vai (d)escrevendo a sua gradual perda de memória e de controlo sobre as emoções, o estado de consciência alterado, a compulsividade obsessiva, a dificuldade em reconhecer os outros, as alterações de comportamento e personalidade... Mero pretexto, afinal, para uma reflexão sobre o sentido da vida e questionação do destino do homem no palco do mundo.

“Leio o que já escrevi e entristeço-me por apenas existir no papel (…)”, lê-se na página 56. A Força das Sentenças, escrito com fluência narrativa, grande espessura evocativa e uma muito atenta observação do humano, é isso mesmo: um livro sobre a condição humana. E tem a força de uma qualidade literária. Devo aqui confessar que já há muito tempo não me sensibilizava nem me comovia tanto com uma narrativa, possivelmente desde que li De Profundis, Valsa Lenta (1997), de José Cardoso Pires – descrição, a posteriori, de um acidente vascular cerebral sofrido pelo próprio escritor.

Depois de Bom Tempo no Canal - A Conspiração da Energia (Letras Lavadas, 2012), Capítulo 41 – a Redescoberta da Atlântida (Letras Lavadas, 2013), Nove Estações (Letras Lavadas, 2014), A Viagem de Juno (Letras Lavadas, 2019), Ilha-América (Letras Lavadas, 2020), A escrava Açoriana (Cultura Editora, 2022) e agora com a novela em análise, o ex-guitarrista e atual psicólogo e escritor Pedro Almeida Maia vai continuar a levantar os véus da alma humana.

 

Victor Rui Dores







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