A Força das Sentenças
ou as memórias de um desmemoriado
“Escondo-me na névoa baça e apalpo o
nada, na esperança de encontrar outro eu, dali, daquele lado fosco, embaciado, e
com os dias, as semanas e os meses, sem que encontre nada a que me agarrar”. (pág. 81)
Pedro Almeida Maia, o mais
cinematográfico dos escritores açorianos, soma e segue.
Deste autor, acabo de ler uma novela de
particular interesse para a literatura e para a neurociência: A Força das
Sentenças (On y va, 2023), obra vencedora do Prémio Literário Manuel
Teixeira Gomes 2023 (em 120 trabalhos apresentados), lançado pela Câmara
Municipal de Portimão com o objetivo de promover e estimular a criação
literária.
Consciente da sua doença
degenerativa, sentindo-se um “empecilho” para os outros, mas em estado de negação,
Quental, dotado de sarcasmo e de sentido crítico, escreve e escreve-se. Com
perseverança, obstinação e lucidez intermitente, numa desesperada tentativa de
resolução de problemas interiores. Quiçá em forma de autopsicoterapia, e disso fazendo
catarse. Sempre acompanhado de seu cão, que ora vai chamando de D´Artagnan, Aramis,
Porthos ou Athos, o protagonista evoca memórias vividas e sentidas: a lembrança
de Josefa, a mulher amada; a saudade do que ficou e/ou poderia ter acontecido; as
vivências açorianas (foi docente na ilha de São Miguel) e africanas (Moçambique,
a Guerra Colonial e a memória de ver matar e morrer, em páginas de tocante
humanidade).
“A esperança não morre, nós é que a ignoramos”,
escreve o narrador (página 71). Atento ao que se passa à sua volta, ele vai assistindo
a séries sobre animais na BBC, a partir das quais faz comparações com a sua
situação clínica e tira conclusões:
“Um atum pode nadar mais de
sessenta quilómetros por dia, mas eu estava incapaz de dar um único passo na
tela em branco em que se tornara a minha vida” (pág. 131).
Deitado numa cama de rede, ou no lar
de idosos para onde mais tarde irá parar, divorciado da realidade e fazendo por
esquecer o abismo da morte, ele mantém-se vivo com as lembranças do passado,
partilhando sentimentos, estados de alma e sonhos, resultando notáveis
descrições a partir destes.
Quental, procurando o eu no
outro eu, vai (d)escrevendo a sua gradual perda de memória e de controlo
sobre as emoções, o estado de consciência alterado, a compulsividade obsessiva,
a dificuldade em reconhecer os outros, as alterações de comportamento e
personalidade... Mero pretexto, afinal, para uma reflexão sobre o sentido da
vida e questionação do destino do homem no palco do mundo.
“Leio o que já escrevi e
entristeço-me por apenas existir no papel (…)”, lê-se na página 56. A Força
das Sentenças, escrito com fluência narrativa, grande espessura
evocativa e uma muito atenta observação do humano, é isso mesmo: um livro sobre
a condição humana. E tem a força de uma qualidade literária. Devo aqui confessar
que já há muito tempo não me sensibilizava nem me comovia tanto com uma
narrativa, possivelmente desde que li De Profundis, Valsa Lenta
(1997), de José Cardoso Pires – descrição, a posteriori, de um acidente
vascular cerebral sofrido pelo próprio escritor.
Depois de Bom Tempo no Canal -
A Conspiração da Energia (Letras Lavadas, 2012), Capítulo 41 – a
Redescoberta da Atlântida (Letras Lavadas, 2013), Nove Estações (Letras
Lavadas, 2014), A Viagem de Juno (Letras Lavadas, 2019), Ilha-América
(Letras Lavadas, 2020), A escrava Açoriana (Cultura Editora,
2022) e agora com a novela em análise, o ex-guitarrista e atual psicólogo e
escritor Pedro Almeida Maia vai continuar a levantar os véus da alma humana.
Victor Rui Dores
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