OPINIÃO: VICTOR RUI DORES | Madalena Férin revisitada

 




Madalena Férin revisitada

 

2023 ficará marcado como o ano de Madalena Férin (1929-2010), já que as publicações, coincidentes, de dois livros vieram resgatar do esquecimento esta escritora: Violinos ocultos sob a relva, poesia reunida (1957-2003), Instituto Açoriano de Cultura), com organização e introdução de Ângela de Almeida; e É preciso romper o amanhã – Madalena Férin revisitada (Companhia das Ilhas), coordenado por Vasco Medeiros Rosa.

Ângela de Almeida, especialista em Natália Correia, e Vasco Medeiros Rosa, reputado brandoniano, são a afirmação inequívoca de uma verdadeira vocação de pesquisadores literários. Estamos na presença de ensaístas que, bem documentados e informados, dão ao que escrevem tratamento criterioso e meticuloso, pois que possuem a capacidade de informar, esclarecer, decifrar e avaliar, incorporando nos seus trabalhos as metodologias dos mais diversos ramos da investigação literária.

Maria Madalena Velho Arruda Monteiro da Câmara Pereira Férin pertenceu a uma família que marcou as letras e as artes a nível regional e nacional: era neta do médico e historiador Manuel Monteiro Velho Arruda (1873-1950), e filha do poeta neorromântico Armando Monteiro da Câmara Pereira (1898-1974), e teve como irmãos Fernando Monteiro (engenheiro), Armando Monteiro (filósofo e poeta), Jacinto Monteiro (sacerdote e historiador), José Nuno da Câmara Pereira (1937-2018), artista plástico de projeção nacional e internacional. Desde muito jovem, teve a coragem de pugnar a favor dos princípios e valores democráticos. A sua ficção narrativa reflete, de forma muito clara, as suas preocupações na defesa da Liberdade.

Aos 27 anos de idade publicou o primeiro livro, com o título Poemas (Coimbra editora, 1957) e remeteu-se, durante quase duas décadas, ao silencio, voltando à poesia em 1984 com o livro Meia-noite no mar (Instituto Histórico de Ponta Delgada), a que se seguiram outras publicações: A cidade vegetal e outros poemas (DRAC/SREC, 1987), O anjo fálico (DRAC/SREC, 1990), Pão e absinto (Espaço XX1, D.L., 1998), Prelúdio para o dia perfeito (Salamandra, 1999), Quarteto a solo, de que é coautora (2000), e Um escorpião coroado de açucenas (Hugin Editores, 2003) – títulos agora reunidos no já mencionado livro Violinos ocultos sob a relva.

Representada em várias antologias poéticas e tendo obtido alguns prémios literários pelo meio, Madalena Férin dedicou-se também à ficção, tendo publicado quatro títulos: O número dos vivos (Instituto Açoriano de Cultura, 1990), Bem-vindos ao caos (Salamandra, 1996), Dormir com um fauno (Salamandra, 1998) e Africa Annes: o nome em vão (Salamandra, 2001).



Privei de perto com Madalena Férin nos anos 80/90 do século passado, aquando da realização dos Encontros de Escritores na Maia, ilha de São Miguel, promovidos pele escritor Daniel de Sá, e recenseei alguns dos seus livros. Como na altura eu me encontrava em fase de iniciação poética, dela recebi sábios conselhos, um dos quais nunca esqueci: “Não estragues a poesia com palavras, mas com ideias”…

O que não deixa de ser estranho, porque se há coisa que aprecio na poesia de Madalena Férin é precisamente a ambiguidade esplendorosa dos seus poemas, o ritmo das suas palavras, as pulsações e as sonoridades dos seus versos. Prova provada que a poesia não tem outro fim senão ela mesma. Ao leitor caberá descortinar o lado de lá da neblina do verso. Para que, assim, aconteça a fruição do texto (“le plaisir du texte”, nas palavras de Roland Barthes).

Violinos ocultos sob a relva, poesia reunida (1957-2003) é a prova provada e comprovada de uma poética da intimidade e da exaltação dos sentidos. Dos sentidos do corpo da mulher em toda a sua secreta plenitude. Da mulher (genesíaca) enquanto portadora do fogo e enquanto anunciadora dos sinais e dos mistérios da vida e da morte, no sentido em que a mulher é princípio e fim de todas as coisas.

Partindo de uma lírica amorosa para inquietações de ordem existencialista e metafísica, sempre me atraiu, na poesia encantatória de Madalena Férin, a procura (erótica) do amor, do sonho e da felicidade, por um lado e, por outro, o universo simbólico: imaginário mitológico, sopro bíblico, busca de uma unidade cósmica. Onde verdadeiramente as ideias abundam é, sem dúvida, na sua ficção narrativa, ela que, atentíssima observadora do real, dissecou a sua vida (a sua alma), como Vernet agarrado ao mastro do navio para estudar a tempestade… Refiro-me aos retroativos da memória: o espaço sagrado e iniciático da ilha, a infância enquanto paraíso irremediavelmente perdido, as desilusões e os desenganos da vida, a grandeza trágica das paixões, as viagens interiores, as reflexões sobre a efemeridade da existência humana, a questionação do destino do Homem no palco do mundo.

É preciso romper o amanhã – Madalena Férin revisitada reúne dados biográficos e arquivo literário sobre Madalena Férin. O objetivo é igualmente resgatar do esquecimento esta escritora nascida na ilha de São Miguel (Vila Franca do Campo), mas levada, menina e moça, para Santa Maria, ilha de seu pai. Tendo ali vivido até 1958, fixou-se em Lisboa. De 1965 a 1975 esteve em Faro, onde concluiu estudos secundários. Licenciou-se em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e foi Técnica Superior do Instituto de Meteorologia e Geofísica nessa cidade. É precisamente sobre a vida, a poesia e a prosa de Madalena Férin que o livro dá conta através da receção crítica da sua obra e de testemunhos de uma vasta galeria de autores: Álamo Oliveira, Amândio César, Ana Cristina Correia Gil, António Ferreira Monteiro, Armando Côrtes-Rodrigues, Eduíno de Jesus, Fernando Mendonça, Félix Rodrigues, Irene Amaral, Jaime Brasil, João Afonso, João Rui Mendonça, José Enes, José de Almeida Pavão, José Henrique Borges Martins, Maria Estela Guedes, Rebelo de Bettencourt, Ruy Galvão de Carvalho, Urbano Bettencourt e o autor destas linhas.

Esperemos que, a partir de agora, seja reunida a prosa desta escritora de inegável qualidade. Para que ela possa ser lida e entendida como merece.

 

Victor Rui Dores

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