Recordações pandémicas
Corria o ano de 2020 e o covid-19
ameaçava acabar com a civilização.
Um ano antes chegava-nos da China
notícias perturbadoras. Mas como a China fica muito longe dos Açores,
cuidávamos que o covid-19 não sabia nadar e que nunca nos viria bater à porta. Puro
engano: o (mal)dito vírus espalhou-se por todo o mundo e, ao chegar ao sul da
Europa, foi um tal ceifar vidas: primeiro em Itália e Espanha, e depois em Portugal.
À conta do novo coronavírus, ficámos
todos de quarentena, o que foi bom para nós, mas mau para a economia… Escolas
fechadas. Empregos desertos. Ruas vazias. Futebol sem público nos estádios. Telejornais.
Conferências de imprensa diárias com o apoio de muitos gráficos. As nossas
vidas suspensas. Falta dos afetos. Para
compensar, entoávamos, à janela, belos cânticos com os vizinhos, cada um na sua
varanda. Ficávamos em casa a pôr leituras em dia, a arrumar gavetas, a ouvir
música, a ver televisão, especialmente séries da Netflix. Para outros, esses
não foram tempos românticos: os confinamentos fizeram aumentar a violência
doméstica e o número de divórcios… E deram cabo da saúde mental a muita e boa
gente.
Aprendi na tropa que o inimigo ataca
quando ele está preparado, e nós não. Ora, ninguém estava preparado para lidar
com tal inimigo invisível.
De um dia para o outro entraram no
nosso léxico expressões como “confinamento obrigatório, “isolamento
profilático”, “ensino à distância”, “regime de teletrabalho”, “encerramento de
estabelecimentos”, “proibição de realização de espetáculos”, “proibição de
circulação entre concelhos”, “cercas sanitárias”, etc.
Sim, foram tempos difíceis. Não só a
angústia, o medo e a ansiedade de estarmos a viver uma pandemia à escala
planetária, mas, acima de tudo, a perceção de uma falência iminente e de uma
crise económica e social sem precedentes.
E, em pandémica incerteza, andámos
aos ziguezagues. A Organização Mundial da Saúde começou por aconselhar o uso da
máscara; depois desaconselhou o uso da mesma, por este artefacto poder dar uma
falsa sensação de segurança; e depois voltou a recomendar a máscara... Um
estudo sugeria que o vírus podia permanecer durante 72 horas em superfícies
como plástico ou aço. Nessa altura íamos ao supermercado de máscara e luvas e,
regressando a casa, descalçávamos os sapatos, desinfetávamos as compras e
púnhamos toda a roupa imediatamente a lavar, a caminho do banho…
Nas ruas desviávamo-nos das pessoas
como se de pestíferos se tratassem…
Depois surgiu um outro estudo a dizer que não
havia provas do contágio através de superfícies e objetos. O que era importante
era lavar as mãos com frequência e tossir e/ou espirrar para o braço… A verdade
é que, do nosso bolso, saiu muito dinheiro para máscaras e álcool-gel…
E, por entre a bruma de mensagens
confusas veiculadas pela OMS, lá surgiu uma segunda vaga do covid-19. A
comunidade científica, que já se vinha mobilizando, reuniu esforços e foram
descobertas as tão aguardadas e eficazes vacinas (nanja para Trump, Bolsonaro,
Maduro e outros palermas…).
A vacinação foi generalizada e, coisa curiosa
em Portugal, correu bastante bem. Na linha da frente no combate à pandemia, os
profissionais de saúde continuaram a ser verdadeiros heróis, ajudando a salvar
vidas. E aprendemos todos a lidar com o
desconforto de zaragatoas e a colheita de amostras: o(a) enfermeiro(a) começava
o procedimento pela narina esquerda, primeiro com cuidado na introdução e
depois com destreza a rodar a ponta no fundo da fossa nasal; depois na narina
direita, a mesma operação; concluído o teste, mergulhava-se o cotonete
nasofaríngeo no frasquinho do reagente e vertia-se umas gotas indicados na
embalagem do kit… E, com ansiedade, ficávamos a saber se dava positivo, negativo
ou inconclusivo.
Voltámos a sair para a rua, mas
sempre com prudência. Impôs-se o distanciamento social e os testes rápidos para
diagnóstico do covid-19 tornaram-se uma rotina. Até para a entrada nalguns
restaurantes. E surgiu no nosso léxico uma nova expressão: o “novo-normal”.
Terminou o pesadelo e o vírus está
controlado, mas convém estar alerta. À cautela, eu propunha, a quem de direito,
que se abandonasse a prática de guisar morcegos…
Victor Rui Dores
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