Do meu 25 de Abril
“Esta é a
madrugada que eu esperava/ o dia inicial, inteiro e limpo/ onde emergimos da
noite e do silêncio/ e livres habitamos a substância do tempo”.
Sophia de Mello Breyner, “25 de
abril”
Passei a infância e parte da minha
adolescência sob a ditadura do Estado Novo. E ia a caminho dos 16 anos de idade
quando se deu o 25 de abril de 1974. Vivia então com a minha família na ilha
Terceira, era estudante liceal e lembro-me como se fosse hoje. Foi no decorrer
de uma aula de Ginástica (hoje diz-se Educação Física) que Monteiro Pais,
professor daquela disciplina, nos deu a notícia:
- Houve uma revolução em Lisboa!
Pouco familiarizados que estávamos
com revoluções, continuámos a saltar o plinto no ginásio do Liceu…
Angra, imersa no seu plácido sono histórico,
era então uma cidade tradicionalista e conservadora. Pairava no ar a opressão,
a intolerância, o subdesenvolvimento. Brandos costumes e públicas virtudes. Mentes
zeladoras da boa moral. Cedo conheci a disciplina austera e a repressão na
escola primária com a aplicação do “poder corretivo”: reguadas, palmatoadas, bofetadas,
açoites, verdascadas e outros castigos corporais; muito respeitinho às
autoridades, e diziam-nos que não eram de confiança aqueles senhores mal-encarados
da Rua do Palácio: os agentes da PIDE. Mas
a maior ameaça que pairava sobre os nossos ombros adolescentes era, sem dúvida,
a Guerra Colonial.
Quando Marcelo Caetano sucedera a
Oliveira Salazar em 1968, meu pai, diligente funcionário público e com quatro
filhos mancebos, chegou a depositar esperanças na chamada “primavera
marcelista”. Mas logo se apercebeu de que se tratava de uma mudança do mesmo
para o mesmo, pois que a dita guerra continuou…
Sabíamos, em surdina, que existiam
alguns focos de resistência em Angra: as reuniões clandestinas em casa de José
Orlando Bretão e as tertúlias com Emanuel Félix; palestras, exposições, teatro,
concertos musicais, edição de livros, a geração “Glacial” e jovens autores iam
agitando as águas da pardacenta rotina; conspirava-se, em segredo, nos cafés
“Portugália” e “Chá Barrosa”; ouvia-se, às escondidas, a “Rádio Portugal Livre”
com o aparelho bem encostado ao ouvido, porque precisamente nesse tempo as paredes
tinham ouvidos… O “Rádio Clube de Angra” emitia o programa “Vampiros”, que
passava a música proibida do Zeca Afonso, do Sérgio Godinho e do Adriano
Correia de Oliveira. Ali também se ouviam, semanalmente, as crónicas inauditas
dos padres Coelho de Sousa e Avelino Soares. E havia as corajosas homilias do
padre Laudalino Moniz na igreja da Conceição, sempre vigiadas de perto pelo
pide R. Os sectores mais progressistas da Igreja, imbuídos das ideias arejadas
saídas do Concílio Vaticano II, faziam-se sentir. E eu pecava por pensamentos,
palavras atos e omissões a ler José Vilhena e a ouvir, num estafadíssimo 45
rotações que o Albano me emprestara, a erótica voz de Jane Birkin a cantar o Je
T´aime, Moi Non Plus…
O 25 de Abril veio em meu auxílio e
na melhor altura: libertou-me e livrou-me da guerra. Juntei-me à festa naqueles
primeiros dias, percorrendo as ruas de Angra de cravo em punho. Conhecíamos,
finalmente, a cor da liberdade e nada viria a ser como dantes.
Mas convirá não esquecer que a
Revolução do 25 de Abril de 1974 representa um marco fundamental não apenas na
história de Portugal do século XX, mas em toda a história da nacionalidade. Com
esta revolução não só se fechou um ciclo imperial iniciado com a expansão
marítima do século XV, como se abriu a via da integração numa nova entidade
chamada Comunidade Europeia. E, para nós, açorianos, a democracia trouxe-nos
uma conquista fundamental e, até ver, irreversível: a Autonomia político-administrativa.
Com ela, abriram-se novas possibilidades de desenvolvimento para estas ilhas.
Quem não conhece o passado,
arrisca-se a cometer os mesmos erros. E o direito á liberdade implica o dever
da memória. Com tanto populismo e desinformação à solta, e com uma a
extrema-direita a crescer a olhos vistos, há que consolidar, todos os dias, o
25 de abril. Porque em 50 anos de democracia, Portugal modernizou-se, mas não
se desenvolveu convenientemente. Por isso, em tempo de muitas e variadas crises,
é preciso recuperar o orgulho e a autoestima, e não deixar morrer a esperança.
Victor Rui Dores
Post Scriptum: Obviamente que muito ficamos a dever aos
capitães de Abril. Mas, para mim, o grande herói do 25 de abril foi o cabo
Alves Costa que, na Rua do Arsenal, se recusou a cumprir a ordem do brigadeiro
Junqueira dos Reis de abrir fogo sobre o capitão Salgueiro Maia. Esse é que foi
um momento decisivo.
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