DO MEU 25 DE ABRIL | Artigo de Opinião de Victor Rui Dores

 




Do meu 25 de Abril

             

            “Esta é a madrugada que eu esperava/ o dia inicial, inteiro e limpo/ onde emergimos da noite e do silêncio/ e livres habitamos a substância do tempo”.

                                                                                                            Sophia de Mello Breyner, “25 de abril”

 

Passei a infância e parte da minha adolescência sob a ditadura do Estado Novo. E ia a caminho dos 16 anos de idade quando se deu o 25 de abril de 1974. Vivia então com a minha família na ilha Terceira, era estudante liceal e lembro-me como se fosse hoje. Foi no decorrer de uma aula de Ginástica (hoje diz-se Educação Física) que Monteiro Pais, professor daquela disciplina, nos deu a notícia:

- Houve uma revolução em Lisboa!

Pouco familiarizados que estávamos com revoluções, continuámos a saltar o plinto no ginásio do Liceu…

Angra, imersa no seu plácido sono histórico, era então uma cidade tradicionalista e conservadora. Pairava no ar a opressão, a intolerância, o subdesenvolvimento. Brandos costumes e públicas virtudes. Mentes zeladoras da boa moral. Cedo conheci a disciplina austera e a repressão na escola primária com a aplicação do “poder corretivo”: reguadas, palmatoadas, bofetadas, açoites, verdascadas e outros castigos corporais; muito respeitinho às autoridades, e diziam-nos que não eram de confiança aqueles senhores mal-encarados da Rua do Palácio:  os agentes da PIDE. Mas a maior ameaça que pairava sobre os nossos ombros adolescentes era, sem dúvida, a Guerra Colonial.  

Quando Marcelo Caetano sucedera a Oliveira Salazar em 1968, meu pai, diligente funcionário público e com quatro filhos mancebos, chegou a depositar esperanças na chamada “primavera marcelista”. Mas logo se apercebeu de que se tratava de uma mudança do mesmo para o mesmo, pois que a dita guerra continuou…

Sabíamos, em surdina, que existiam alguns focos de resistência em Angra: as reuniões clandestinas em casa de José Orlando Bretão e as tertúlias com Emanuel Félix; palestras, exposições, teatro, concertos musicais, edição de livros, a geração “Glacial” e jovens autores iam agitando as águas da pardacenta rotina; conspirava-se, em segredo, nos cafés “Portugália” e “Chá Barrosa”; ouvia-se, às escondidas, a “Rádio Portugal Livre” com o aparelho bem encostado ao ouvido, porque precisamente nesse tempo as paredes tinham ouvidos… O “Rádio Clube de Angra” emitia o programa “Vampiros”, que passava a música proibida do Zeca Afonso, do Sérgio Godinho e do Adriano Correia de Oliveira. Ali também se ouviam, semanalmente, as crónicas inauditas dos padres Coelho de Sousa e Avelino Soares. E havia as corajosas homilias do padre Laudalino Moniz na igreja da Conceição, sempre vigiadas de perto pelo pide R. Os sectores mais progressistas da Igreja, imbuídos das ideias arejadas saídas do Concílio Vaticano II, faziam-se sentir. E eu pecava por pensamentos, palavras atos e omissões a ler José Vilhena e a ouvir, num estafadíssimo 45 rotações que o Albano me emprestara, a erótica voz de Jane Birkin a cantar o Je T´aime, Moi Non Plus

O 25 de Abril veio em meu auxílio e na melhor altura: libertou-me e livrou-me da guerra. Juntei-me à festa naqueles primeiros dias, percorrendo as ruas de Angra de cravo em punho. Conhecíamos, finalmente, a cor da liberdade e nada viria a ser como dantes.




Hoje a data é só, e quase sempre, associada ao fim do regime autoritário, austero e repressivo do Estado Novo, ao fim da Guerra Colonial e à instauração de um regime democrático. É verdade que, a partir de 1974, começaram a fazer parte do quotidiano dos portugueses, nomenclaturas que até então desconhecíamos: a liberdade de expressão, a igualdade dos cidadãos, a justiça social, as eleições livres, o direito à greve, enfim, a democracia.

Mas convirá não esquecer que a Revolução do 25 de Abril de 1974 representa um marco fundamental não apenas na história de Portugal do século XX, mas em toda a história da nacionalidade. Com esta revolução não só se fechou um ciclo imperial iniciado com a expansão marítima do século XV, como se abriu a via da integração numa nova entidade chamada Comunidade Europeia. E, para nós, açorianos, a democracia trouxe-nos uma conquista fundamental e, até ver, irreversível: a Autonomia político-administrativa. Com ela, abriram-se novas possibilidades de desenvolvimento para estas ilhas.

Quem não conhece o passado, arrisca-se a cometer os mesmos erros. E o direito á liberdade implica o dever da memória. Com tanto populismo e desinformação à solta, e com uma a extrema-direita a crescer a olhos vistos, há que consolidar, todos os dias, o 25 de abril. Porque em 50 anos de democracia, Portugal modernizou-se, mas não se desenvolveu convenientemente. Por isso, em tempo de muitas e variadas crises, é preciso recuperar o orgulho e a autoestima, e não deixar morrer a esperança.

 

          Victor Rui Dores

 

Post Scriptum: Obviamente que muito ficamos a dever aos capitães de Abril. Mas, para mim, o grande herói do 25 de abril foi o cabo Alves Costa que, na Rua do Arsenal, se recusou a cumprir a ordem do brigadeiro Junqueira dos Reis de abrir fogo sobre o capitão Salgueiro Maia. Esse é que foi um momento decisivo.






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