Belas e bíblicas
são as narrativas de Álamo Oliveira
Prodigiosa é a mestria, a desenvoltura
e a imaginação criadora de Álamo Oliveira que, desligado de modas, tertúlias e
grupos literários, continua a escrever, do Raminho para o Mundo, em busca do
que há de insondável na alma humana.
Num relacionamento de vaivém entre
ficção narrativa e o percurso do vivido, neste autor a escrita é sempre um
lugar de confronto e de resistência: de denúncia às verdades ilusórias e de
renúncia às máscaras de um quotidiano alienante.
Com efeito, em toda a obra alamiana
há um discurso literário que lança olhares sobre os mitos do passado recente,
do presente incerto e do futuro de bruma, isto é, a questionação, crítica, céptica
e não poucas vezes perversa do real. O seu mais recente livro é disso um bom
exemplo: Os belos seios da serpente (Vale das Amoras, 2024). No
registo de uma escrita alegórica, a obra é atravessada por um sopro bíblico, ou
seja, por um vento profético e evangélico, não fosse Álamo Oliveira um profundo
conhecedor dos textos sagrados, com ênfase para o Cântico dos Cânticos,
que pontua o início de cada capítulo do livro.
Muitas das mitologias cristãs estão aqui plasmadas, o que, de alguma forma, vem dar continuidade a um outro romance de Álamo, Marta de Jesus, a verdadeira (Letras lavadas, 2014), sem esquecer o que na poesia ele já havia experimentado em Os Quinze Misteriosos Mistérios (ed. de autor, 1976). Recorde-se que, num outro registo – o dramático – Norberto Ávila (1936-2022) já havia trilhado semelhantes caminhos com Os Doze Mandamentos (D.R.A.C./ S.R.E.C.,1994) e A paixão segundo João Mateus (I.A.C., 2011), onde também as referências bíblicas têm implicações diretas nos dias de hoje.
Em Os belos seios da serpente
temos, como protagonista, o velho açoriano Eliseu dos Anjos, emigrante
regressado dos E.U.A., pai de dois filhos, viúvo e “escritor de contos
bíblicos”, personagem atrás do qual se esconde Álamo Oliveira para criticar e
subverter, quase sempre de forma humorística, os textos sagrados. E fá-lo
através de porfiadas (re)leituras, (re)interpretações e (re)criações de
episódios ligados sobretudo ao Antigo Testamento, convertendo-os para os tempos
atuais.
Nesta matéria, as figuras bíblicas
Adão e Eva, Abel e Caim, José e Maria, Noé e Moisés, Eliseu e Elias, Sansão e
Dalila, David e Golias, Saul e Jónatas, Jonas e Daniel, Salomão e Jeremias, Isaque
e Esaú, Jacob e Rebeca, Ester e Judite, entre outras, terão correspondência com
gente contemporânea. E são Impressionantes as bem conseguidas elipses e
analepses (“flashbacks”, para utilizar linguagem cinematográfica) deste romance
com desfechos imprevistos e imprevisíveis: a Torre de Babel e as Torres Gémeas
de Nova Iorque; a largada de feras no Coliseu de Roma e as touradas de corda na
ilha Terceira; a Terra Prometida do leite e do mel e as bem-aventuranças dos
E.U.A. e da União Europeia; o reino de Sabá e a riqueza do Dubai; as pragas do
Egipto e os sismos nos Açores; as maçãs do Éden apanhadas na freguesia dos Biscoitos;
Judite e Marilyn Monroe; David e Elvis Presley; Holofernes e John Kennedy; as
praias de Nínive e Las Vegas, a “cidade do pecado”; as batalhas bíblicas e os
atuais conflitos que opõem Ucrânia/ Rússia, Israel/Hamas, etc.
Os belos seios da serpente tem, como leitmotiv, a queda
da humanidade por intermédio da tentação da serpente, com tudo o que isso tem
de simbólico. As sedutoras Eva, Ester, Judite, Rute, rainha de Sabá e Dalila
(com “olhos de Mata-Hari europeia”) dão expressão e conteúdo ao pecado
original.
De resto, as preocupações temáticas
de Álamo Oliveira com as questões da Igreja Católica, da fé e dos seus
contrários constituem a grande metafísica dialética da sua ficção, ele que é marcado
e moldado pelos estudos que fez no Seminário de Angra. E porque é homem do
palco, sabe criar teatralidade e emprestar ambientes cénicos à narrativa do
livro em análise: por exemplo, a descrição da tenda onde Judite vai seduzir e
decapitar o general Holofernes, como forma de libertar o povo hebreu.
Por conseguinte, a tensão interior
entre literatura e religiosidade inflama, ainda e sempre, o imaginário de
Álamo, escritor transgressivo e transgressor e sempre muito atento ao
contencioso social e político das ilhas, de Portugal e do Mundo. Mas atenção: se a escrita deste terceirense por vezes se
ancora no texto bíblico, nunca o faz para o parafrasear, mas para sobre ele
produzir um discurso eminentemente irónico e ideológico – o que está bem
patente em Os belos seios da serpente.
Álamo Oliveira, recorrendo a uma
extraordinária pormenorização, a uma linguagem densa de valores poéticos, à
elaboração de uma atmosfera mágica, à utilização de uma imagística sedutora e
de um ritmo original, dá-nos, neste livro, um belíssimo retrato sobre a
condição humana no teatro do mundo. E, ao fazê-lo, escreve contra o
esquecimento, ele que é um autor que engrandece e dá luzimento à literatura
portuguesa.
Victor Rui Dores
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