OPINIÃO: VICTOR RUI DORES | Das emoções de Aníbal Raposo




  Das emoções de Aníbal Raposo

                                (…)

                                                                        “E no fim das contas

                                                                               Fiquei com a sensação

                                                                  Que minha vida

                                                                                          Dava uma canção”.  (pág. 46)

 

Aníbal Raposo é cá dos meus: tem o ouvido que escreve. Habita-o a linguagem que canta, isto é, a poesia sabe-lhe a música, ele que, melodista por natureza, abriu novos rumos e novas sonoridades à música que hoje se faz nos Açores. 

De resto, a poesia tem na sua origem uma vocação cantante. Foi assim com os gregos, e assim foi com a poesia trovadoresca e com os cantares de gesta medievais, num tempo do amor cortês em que os trovadores eram simultaneamente músicos, poetas e cantores.

Lido e ouvido, os poemas de Aníbal Raposo tornam-se voz, som, melodia, canção. Precisamente por ser uma linguagem que canta, a poesia deste micaelense busca o elemento vocal e sonoro das palavras, e nelas procura uma musicalidade, à boa maneira de Verlaine que, na sua Art Poétique, escrevia:

De la musique avant toute chose (…) De la musique encore et toujours”.

É neste contexto que, mutatis mutandis, podemos integrar a arte poética de Aníbal Raposo. Depois do livro Voos da minha Fajã (edição de autor, 2009) e, agora, com a recente publicação de Vivências (Letras Lavadas edições, 2022), ele volta a ser um poeta da prosódia, ou seja, continua a dar voz e talento aos seus próprios versos (ele que, dentro e fora do palco, canta com apurado sentido interpretativo e espessura emocional), emprestando ritmos, pulsações e sonoridades às palavras. O resultado salta ao ouvido: os poemas deste song writer deslizam em vogais abertas, em tónicas e átonas de sílabas apetecíveis. E, nesta matéria, o poeta-cantor é herdeiro assumido da tradição oral, pois que desde cedo foi tocado pelo gosto das palavras, ouvindo histórias de encantar em noites de não haver televisão, tornando-se, mais tarde, leitor voraz e compulsivo, sobretudo de poesia. Com formação em ciência, é caso para se dizer que, para este engenheiro-trovador, “o binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo” (segundo Fernando Pessoa, que não por acaso era filho de uma açoriana da ilha Terceira).

De resto, não é impunemente que se nasce numa ilha, onde a terra é pequena, o mar é vasto e o sonho é enorme. Por via de uma forte tradição poética e musical (com raízes fundas e profundas nas cantigas de amigo e nas cantigas de escárnio e maldizer, bem patentes no nosso cancioneiro), por influência da geografia e da geologia da ilha (a nemesiana “açorianidade”) e, quiçá, por via do ritmo cadenciado das marés, a verdade é que os Açores sempre se constituíram como um autêntico viveiro de poetas.



Vivendo no meio do Atlântico, Aníbal Raposo é mais um artesão de palavras. O seu ofício é o de lapidar as palavras exatas, únicas e essenciais. A sua função é a de observar o real e dissecar a sua vida – como Vernet agarrado ao mastro do navio para estudar a tempestade…

Com avisado Prefácio da escritora Paula de Sousa Lima, Vivências, que reúne uma espécie de best of poético de Aníbal Raposo, invoca e convoca sentimentos, emoções e estados de alma que ficaram enraizados na memória do autor. Os poemas, escritos ao longo de uma vida e agora reunidos, conhecem uma outra consistência, uma outra unidade e uma nova respiração.

Estamos perante uma poesia que viaja entre o local e o universal e que sente, pensa, sonha, viaja, age e questiona as mitologias do quotidiano. Uma poesia da expressão amorosa e erótica, ligada às raízes comunitárias ancestrais de expressão poética no horizonte da cultura europeia. Isto é, uma poesia helénica, da civilização do Sul, da luz, da emoção e da razão.

Da sua casa da Fajã, Aníbal Raposo “sonha acordado” e escreve para o mundo. Identificando-se com o espaço imagético e afetivo da(s) ilha(s), atento às coisas visíveis e invisíveis e com apurado espírito crítico, o poeta (também pintor) revisita, em Vivências, pessoas, lugares e coisas por ele amadas e que povoam o seu imaginário, isto é, tudo aquilo que lhe ficou suspenso na lembrança telúrica e nostálgica.

O livro, com pintura de capa do próprio autor e graficamente muito bem arrumado, é, na sua essência, uma viagem íntima e intimista através da qual o poeta celebra a vida, o amor, a poesia, a amizade e o sonho, por um lado, e, por outro, denuncia verdades ilusórias e renuncia às máscaras de um quotidiano alienante:

“Procuramos planícies de entendimento

  Encontramos muralhas de distância”. (pág. 102)

 Nesta “jornada” e nesta “caminhada”, a contas com inquietações existencialistas e metafísicas, ele vai questionando, de forma judicativa e conceituosa, o destino do Homem no palco do mundo. Fá-lo e em registos poéticos diversificados que vão dos moldes clássicos (Aníbal é dos poucos poetas que hoje, em Portugal, escreve sonetos), com especial incidência para a redondilha maior, até à poesia livre de rima e de métrica.

Vivências é uma obra sobre a condição humana, de que os capítulos Tempo, Doença e Ocaso são significativos exemplos, pois que neles há uma reflexão, profunda e poética, sobre a enfermidade, a consciência da finitude, a vida e a morte. De resto, nas 370 páginas do livro topamos com poemas que valem por toda uma literatura: “Coisas da idade” (págs. 41/42), “Fragilidades” (págs. 72/73), “Cantigas dos Cantos (págs. 86/87), “Nada a declarar” (págs. 188/189), “Despedida” (pág. 200), “Desnorte” (pág. 215), “Ser ilhéu (págs. 298/299), entre outros.

Por conseguinte, este é um livro de olhares, vibrações, transparências e memórias soltas. Ou seja, fragmentos de vida vivida, sentida e sonhada.

 

                                               Victor Rui Dores                                                                                                                                 

 


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