OPINIÃO: VICTOR RUI DORES | Será a Terceira “a ilha dos amores”?


 Será a Terceira “a ilha dos amores”?

 

O historiador terceirense Gervásio Lima (1876-1945) levou uma vida inteira a defender, nos seus livros e opúsculos, que a ilha Terceira serviu de inspiração à “Ilha dos Amores”, visada nos Cantos IX e X de “Os Lusíadas”, de Luís Vaz de Camões.

Tendo recentemente a Câmara Municipal de Angra do Heroísmo anunciado que os 500 anos do nascimento de Camões serão o tema da edição das Sanjoaninas 2025, sendo as festas dedicadas à “Ilha dos Amores”, e porque estou a coordenar, para fins editoriais, a obra toda do referido historiador, venho pôr aqui alguma água na fervura, agora que tresli o seu livro A Ilha dos Amores (Tip. Insulana Editora, Angra do Heroísmo, 1926).

Bibliotecário desprovido de títulos académicos e exemplo de autodidata, possuidor de um estilo ultrarromântico e francamente hiperbólico, Gervásio Lima foi um dos mais fecundos escritores açorianos da sua época. Para além da investigação histórica, dedicou-se ao jornalismo, à poesia, ao conto, ao teatro, à monografia e aos estudos etnográficos. Pouco preocupado com o rigor histórico e científico, deixava-se levar pela imaginação. Deu alma e corpo a heróis terceirenses (por exemplo, João e Gaspar Côrte-Real, Violante do Canto, Brianda Pereira e Francisco de Ornelas), transformando-os em verdadeiros mitos populares.

Para Gervásio Lima, a Terceira, ilha de Jesus, é inquestionavelmente a “Insula Divina”, a decantada “ilha de Vénus”, onde os navegadores fatigados das longas viagens aportaram para
descansar. Pelo mesmo diapasão afinaram outros autores da época: padre Jerónimo Emiliano Andrade, António Moniz Barreto, João Teixeira Soares de Sousa, Mendo Bem (pseudónimo de Joaquim Moniz de Bettencourt), Ernesto Rebelo, entre outros.

De longe a ilha viram, fresca e bela”.

            Esteve Camões alguma vez na ilha Terceira? Gervásio Lima é da opinião de que o poeta, regressado da Índia, terá aportado à então vila de Angra em 1570, viajando na nau “Fé”. Para tal, baseia-se num facto histórico incontestável: à baía de Angra (que deriva o seu nome de ancora, com o significado de pequena baía, refúgio) aportavam as naus que da Índia regressavam a Portugal. De resto, Angra foi sempre escala de frotas e armadas. Isto é, o porto escolhido para paragem e descanso dos navegadores que de longe vinham extenuados de buscar riqueza e glória. E, sobretudo, para tomar refrescos e reforçar o abastecimento necessário para se colocarem ao abrigo de uma armada protetora que aqui sempre se encontrava por ordem do rei, a fim de socorrer naus, livrando-as da perseguição de piratas e corsários que infestavam os mares dos Açores.

                                               “Onde a costa fazia uma enseada

                                                Curva e quieta, cuja branca areia

                                               Pintou de ruivas conchas Cythereia.




Segundo Gervásio Lima, está aqui “claramente indicada a baía de Angra”, onde as embarcações ancoravam a prover-se de mantimentos. A “branca areia” era a da atual Prainha, na altura estaleiro de embarcações.

                                                “Três formosos outeiros se mostravam

Erguidos com soberba graciosa,

Que de gramíneo esmalte se adornavam

Na formosa ilha alegre e deleitosa:

Claras fontes límpidas manavam

Do cume que a verdura tem viçosa;

Por entre pedras alvas se deriva

A sonorosa linfa fugitiva”.

          Para Gervásio Lima, “os três formosos outeiros”, vistos do mar, são: à esquerda, o Monte Brasil; ao centro, o castelo de São Luís, na elevação onde hoje se encontra o obelisco à Memória de D. Pedro IV; e, à direita, a ermida dedicada a São Pedro Gonçalves, no Corpo Santo, já na altura zona de pescadores.

            Para as “claras fontes límpidas” encontra o autor a seguinte explicação: a partir do outeiro central, isto é, do antigo castelo de São luís, se despenham, entre alvas pedras, as águas límpidas e sonoras da Ribeira dos Moinhos que vinham desaguar no porto da cidade de Angra.

E porque na ilha Terceira abundavam árvores de fruto, sobretudo a laranjeira, Gervásio não esteve com meias medidas e cita estes versos do Canto IX:

Mil árvores estão ao céu subindo

            Com pomos odoríficos e belos

  A laranjeira tem no fruto lindo

            A cor que tinha Daphne nos cabelos” (…)

E foi na Terceira que os argonautas terão encontrado as eróticas e lascivas ninfas… Que ninfas?  Possivelmente (e isto o púdico Gervásio não refere, mas digo eu) mulheres que se dedicavam à mais velha profissão do mundo… Que outras criaturas cairiam nos braços da marinhagem esfomeada e voraz?

            Terá, de facto, a Terceira servido de cenário à camoniana “Ilha dos Amores”? Não acredito, mas gostava de acreditar, até porque sou meio terceirense. Tal como a Atlântida não passou da cabeça de Platão, a “Ilha dos Amores” só existiu na prodigiosa imaginação de Camões. De resto, o maravilhoso que há no poema heroico Os Lusíadas é isso mesmo: criação, fantasia e encantamento.

Vitorino Nemésio, na carta-prefácio à obra aludida no 2.º parágrafo desta minha crónica, bem que avisava: “O amor de Gervásio Lima pela ilha Terceira é exagerado, mas sincero”.


       Victor Rui Dores










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