Carlos L. P. Bessa
ou a circunstância dos dias
“Gostaria
que os meus poemas fossem cabides
Onde pendurasses os sentimentos” (…),
pág. 301
É certo e sabido que os poetas têm
razões que a razão desconhece. Profanadores de todos os saberes, eles sabem que
as palavras se corrompem no comércio quotidiano das gentes. Por isso recuperam,
devolvem, transfiguram e subvertem essas palavras. Porque sabem que a poesia
não explica, implica; o poema não afirma, sugere. O significado da imagem
poética remete-nos sempre para um esfíngico segredo e para uma forte
ambiguidade. Nesta perspetiva, a poesia será sempre uma tentativa de
compreender o incompreensível.
Ao leitor é lançado um desafio: o de
descortinar o lado de lá da neblina do verso. Isto é, ele terá de ser capaz de
decifrar e descodificar o(s) sentido(s) do poema, para que assim aconteça a
fruição do texto. Ao poeta cumpre o ofício de lapidar a palavra única, exata e
essencial e nela encontrar os ritmos e as pulsações, os silêncios e as
sonoridades. Sendo um (incansável) trabalhador da palavra, ele não deixará
nunca de observar o real e dissecar a sua vida (a sua alma) – como Vernet
agarrado ao mastro do navio para estudar a tempestade…
Neste sentido, toda a poesia é de circunstância. É só preciso que as circunstâncias sejam as do poeta: a circunstância exterior deve coincidir com a circunstância interior, como se o poeta a tivesse produzido. Com efeito, de múltiplas e variadíssimas circunstâncias se tece o livro que reúne a poética de Carlos L. P. Bessa, natural de Viana do Castelo, mas de há muito radicado na ilha Terceira. Trata-se de livros reunidos (Tinta da China, 2024), obra de circunstância porque forjada à luz da observação do real, do vivido e do sentido, num jogo do mítico e do simbólico, numa íntima ligação entre a vida e a escrita.
Poeta de agudíssima sensibilidade e
de apreciáveis recursos sensoriais, pesquisador subtil de realidades visíveis e
invisíveis, Carlos L. P. Bessa, sentado à sombra de uma esplanada, colhe
impressões de momentos (fugazes) do dia a dia, num discurso poético marcado em
boa parte por um realismo urbano que faz da enumeração e da justaposição
discursiva uma das técnicas de convocação de um tempo suspenso. O poema é,
ainda e sempre, o momento e a sua circunstância. Deste modo, o poeta (re)visita
lugares, pessoas, breves acontecimentos, fixando emoções, sensações e estados
de alma. E, preocupado com o destino do homem no palco do mundo, atento às
grandes tragédias da Humanidade e a contas com a solidão, o vazio, a ausência, o
tédio, as desilusões e os desenganos da vida, o sujeito poético combate a
simplificação hipócrita da vida, buscando decifrar o enigma da existência. Para
tal, denuncia as verdades ilusórias e renuncia às máscaras de um quotidiano
alienante. E faz do poema o lugar de um confronto, traduzido na inquirição do
real que vai construindo e desconstruindo através da palavra. Este é, acima de
tudo, uma poética que age e reage, que pensa e sente (olá, Álvaro de Campos).
Livro de itinerâncias, peregrinações e partilhados afetos, livros
reunidos traz-nos vibrações, impressões e memórias soltas. Esta é uma
poesia de “mochila às costas”, dialogante (“boca” e “espelho” são palavras
recorrentes), virada para o outro, com mais substantivos do que adjetivos.
O amor também cá está – o filia e
o eros, sendo que “Blues com nevoeiro ao fundo” é um dos poemas mais
eróticos que me foi dado ler nos últimos tempos. Rico em espessura evocativa, apreciei, nesta obra, a nomeação e a carga
significativa dessa nomeação, havendo a registar um notável poder de observação
e uma minuciosa pormenorização. Uma belíssima poética para quem o souber ler.
Victor Rui Dores
Comentários
Enviar um comentário