OPINIÃO: VICTOR RUI DORES | Do desprezo pela cultura

 






Do desprezo pela cultura

 

O desprezo pela cultura sempre foi um problema para aqueles que não têm cultura suficiente para perceber o valor da cultura.

“Quando oiço a palavra cultura, saco do revólver”, disse um dia Hermann Göring, nazi da pior espécie.

Os ditadores (os de ontem e os de hoje) sabem do perigo que a cultura pode representar; sabem, sobretudo, que um cidadão informado e com acesso à diversidade de opinião é mais difícil de controlar pelo pensamento único. Manter a população o mais possível ignorante sempre foi a política dos déspotas. Daí a censura, a prisão, a repressão e a opressão aos que ousaram saber da “cor da liberdade”.

Pascal identificou este problema em relação à ignorância nos seguintes termos: “um coxo sabe que é coxo, mas um ignorante, precisamente pela sua ignorância, não sabe que é ignorante”.

E é precisamente aqui que a cultura pode fazer sacar das armas.

Por desprezarem a cultura, muitos livros acabaram nas fogueiras inquisitoriais. Por falta de cultura foram destruídos os Budas de Bamiyan e as ruínas de Palmira. E, pela mesma razão, os russos invadiram a Ucrânia e Israel comete genocídio todos os dias.

Pior do que o desprezo pela cultura, é a prática de certas políticas culturais. Delas sempre desconfiei. Os estados autoritários e as ditaduras é que costumam ter uma “política cultural”. As democracias felizmente não. Estaline tinha uma política cultural e através dela mandou matar todos os seus inimigos... Hitler tinha uma “política cultural” e ordenava aos artistas que exaltassem os méritos da juventude hitleriana, os malefícios do judaísmo e a supremacia do nacional-socialismo. Salazar também teve uma “política cultural” (via António Ferro): a celebrada “política do espírito”, que deu no que deu... Da “revolução cultural” chinesa é melhor nem falar...




            É assim nos regimes de força. Nas democracias, quem faz a cultura são os cidadãos de sua livre iniciativa. A cultura de uma sociedade livre não é planificada nem dirigida por gestores estatais, nem regionais: a cultura de uma sociedade livre e saudavelmente democrática é aquela que fazem, livremente, os seus cidadãos.

            Não deve, pois, ser o governo a ter as ideias todas e será até muito conveniente que não tenha sequer a maioria delas. Não deve ser ele, em suma, a ter aquela “política cultural” que os ditadores acham essencial que se tenha. É óbvio que qualquer governo deve apoiar a cultura, mas discretamente, sem dirigismos e sem paternalismos.

A cultura (que não deverá ser confundida com animação) deverá ser entendida como fator de liberdade individual e motor de desenvolvimento económico. Teimamos, porém, a fazer dela uma atividade subsidiária.

Nesta matéria, aprendi a lição de Emanuel Félix, meu maître à penser. O conceito (novo) de cultura tem a ver com o que somos e com o modo de o ser, com a forma de estar no mundo, com o sentido que trazemos da beleza e da justiça, com a maneira por que exprimimos os nossos sentimentos de alegria ou tristeza, com o que comemos e com o que vestimos, com os cuidados que prestamos ao nosso jardim ou à casa que habitamos. Uma perspetiva de cultura que tem a ver também com a paisagem que nos cerca, com os lugares que amamos ou que escolhemos para viver. Por conseguinte, uma ideia de democracia cultural que pressupõe que todos somos portadores de cultura, fazedores de cultura.

Infelizmente, os nossos valores culturais continuam muito cristalizados no passado: o que é difícil não é aderirmos a ideias novas, o que é difícil é libertarmo-nos das ideias velhas…     


                                                                                                          Victor Rui Dores









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