A Loja do Grandela
A Loja do Grandela cheirava a macela
e a nêveda.
Situada na Rua da Sé, Angra do
Heroísmo, nos baixos do edifício onde outrora funcionou o Convento da Esperança,
era um dos poucos estabelecimentos comerciais que, nos anos 60 do século passado,
ainda fazia vendas por troca.
A Loja do Grandela era vagamente sombria e das
suas paredes escorria humidade. Destacava-se, numa delas, um velho calendário
americano, ilustrando o general Washington a atravessar um lago numa barca, de
bandeira desfraldada para combater os ingleses…
A toda à volta da Loja havia prateleiras
repletas com os mais diversos e inesperados objetos: loiças, copos, pratos,
tigelas, chapéus, boinas, suspensórios, frascos, livros, periódicos, pentes,
navalhas, canivetes, esferográficas, cadernos, cigarros “Santa Justa”, isqueiros,
mezinhas, unguentos, miniaturas de carros de bois, mealheiros de barro…
Era uma loja verdadeiramente popular. O seu
proprietário era o sr. Guilherme da Silva Machado, continental de há muito radicado
na Terceira, conhecido por “Grandela” por ter trabalhado, enquanto jovem, nos
Armazéns Grandella, em Lisboa. Era um homem comunicativo e afável, sobrancelhas
hirsutas, sempre de cigarro ao canto da boca… Em passinhos curtos, ele atendia
simpaticamente os clientes por detrás de um balcão que era tosco e comprido.
Era lá que os terceirenses se abasteciam de tudo um pouco, mas as ervas
medicinais era o que tinha mais saída.
Foi a partir da Loja do Grandela que,
de algum modo, fiz a minha iniciação na leitura lúdica: ali, menino e moço,
comprei os primeiros livros de banda desenhada (“Tio Patinhas”, “Pato Donald”,
“Texas Jack”, “Xerife”, “Condor”, “Aventuras do FBI”…) e adquiri as primeiras
carteiras de cromos (“História de Portugal“, Ases da Bola”, “Raças Humanas”,
“Bandeiras do Universo”…).
Essas publicações eram para mim um
consolo, pois contrastavam com os manuais da escola primária, muito pouco
atraentes do ponto de vista gráfico. E quando, anos mais tarde, li Júlio Verne,
Emilio Salgari e Robinson Crusuoe, já levava comigo lastro suficiente para
entender todo aquele maravilhoso mundo de aventuras.
Muitos clientes, sobretudo “gente do
campo” (a palavra rural não era então muito utilizada) vinha à cidade para
comprar, na Loja do Grandela, os sempre aguardados almanaques: “Almanaque do
Camponês”, “Borda d´Água” e “O Seringador”. Antes de entrar para o Liceu, foi a folhear tais
publicações que aprendi e apreendi muitos conteúdos empíricos: prognósticos
para todo o ano, conselhos práticos baseados na sabedoria popular, astrologia,
previsões meteorológicas, fases da lua, horários do nascer e pôr do sol,
indicações para as sementeiras e colheitas do setor agrícola, agricultura,
jardinagem, oráculos, o signo mensal, festas religiosas e profanas, etc.
Eu despertava para o conhecimento das
coisas e, por isso, guardo desse tempo as mais doces e saborosas recordações.
Hoje somos todos muito “científicos”,
e a nossa vida é guiada pelo esplendor da economia de mercado. Por isso, as
vendas, os botequins e as velhas lojas de antigamente transformaram-se, nos
dias que correm, em snack-bares, lojas de pronto-a-vestir e agências bancárias…
A Loja do Grandela é hoje a Loja do RIAC.
“Sica transit gloria mundi”.
Victor Rui Dores
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