OPINIÃO: VICTOR RUI DORES | A Loja do Grandela

 



A Loja do Grandela

 

A Loja do Grandela cheirava a macela e a nêveda.

Situada na Rua da Sé, Angra do Heroísmo, nos baixos do edifício onde outrora funcionou o Convento da Esperança, era um dos poucos estabelecimentos comerciais que, nos anos 60 do século passado, ainda fazia vendas por troca.

 A Loja do Grandela era vagamente sombria e das suas paredes escorria humidade. Destacava-se, numa delas, um velho calendário americano, ilustrando o general Washington a atravessar um lago numa barca, de bandeira desfraldada para combater os ingleses…

 A toda à volta da Loja havia prateleiras repletas com os mais diversos e inesperados objetos: loiças, copos, pratos, tigelas, chapéus, boinas, suspensórios, frascos, livros, periódicos, pentes, navalhas, canivetes, esferográficas, cadernos, cigarros “Santa Justa”, isqueiros, mezinhas, unguentos, miniaturas de carros de bois, mealheiros de barro…

 Era uma loja verdadeiramente popular. O seu proprietário era o sr. Guilherme da Silva Machado, continental de há muito radicado na Terceira, conhecido por “Grandela” por ter trabalhado, enquanto jovem, nos Armazéns Grandella, em Lisboa. Era um homem comunicativo e afável, sobrancelhas hirsutas, sempre de cigarro ao canto da boca… Em passinhos curtos, ele atendia simpaticamente os clientes por detrás de um balcão que era tosco e comprido. Era lá que os terceirenses se abasteciam de tudo um pouco, mas as ervas medicinais era o que tinha mais saída.

Foi a partir da Loja do Grandela que, de algum modo, fiz a minha iniciação na leitura lúdica: ali, menino e moço, comprei os primeiros livros de banda desenhada (“Tio Patinhas”, “Pato Donald”, “Texas Jack”, “Xerife”, “Condor”, “Aventuras do FBI”…) e adquiri as primeiras carteiras de cromos (“História de Portugal“, Ases da Bola”, “Raças Humanas”, “Bandeiras do Universo”…).

Essas publicações eram para mim um consolo, pois contrastavam com os manuais da escola primária, muito pouco atraentes do ponto de vista gráfico. E quando, anos mais tarde, li Júlio Verne, Emilio Salgari e Robinson Crusuoe, já levava comigo lastro suficiente para entender todo aquele maravilhoso mundo de aventuras.



Muitos clientes, sobretudo “gente do campo” (a palavra rural não era então muito utilizada) vinha à cidade para comprar, na Loja do Grandela, os sempre aguardados almanaques: “Almanaque do Camponês”, “Borda d´Água” e “O Seringador”.  Antes de entrar para o Liceu, foi a folhear tais publicações que aprendi e apreendi muitos conteúdos empíricos: prognósticos para todo o ano, conselhos práticos baseados na sabedoria popular, astrologia, previsões meteorológicas, fases da lua, horários do nascer e pôr do sol, indicações para as sementeiras e colheitas do setor agrícola, agricultura, jardinagem, oráculos, o signo mensal, festas religiosas e profanas, etc.

Eu despertava para o conhecimento das coisas e, por isso, guardo desse tempo as mais doces e saborosas recordações.

Hoje somos todos muito “científicos”, e a nossa vida é guiada pelo esplendor da economia de mercado. Por isso, as vendas, os botequins e as velhas lojas de antigamente transformaram-se, nos dias que correm, em snack-bares, lojas de pronto-a-vestir e agências bancárias… A Loja do Grandela é hoje a Loja do RIAC.

“Sica transit gloria mundi”.

 

Victor Rui Dores







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