OPINIÃO: VICTOR RUI DORES | Os Contos, de Vasco Pereira da Costa, ou a cartografia da memória

 



Os Contos, de Vasco Pereira da Costa,

ou a cartografia da memória

 

É este o poder que a escrita me dá: arrancar amarras de servidão, libertar enraizamentos daninhos, agarrar no tempo, torcê-lo, contorcê-lo e levá-lo até onde quero, anos e anos retrocedendo, tecendo as horas e os dias num tapete onde raspo as garras da memória. (…)”

                                                                                                                                                                      in O Vendedor de Lérias, pág. 135

 

Cavaleiro andante por amor à literatura, Vasco Pereira da Costa é um escritor que ousa, que subverte e que transgride.

Deste autor terceirense acabo de ler Os Contos (Letras Lavadas edições, 2024), que reúne as narrativas inclusas nos seus livros há quatro décadas desaparecidos dos escaparates: Nas Escadas do Império (Centelha, Coimbra, 1978), Plantador de palavras Vendedor de Lérias (Câmara Municipal de Coimbra, 1984, Prémio Miguel Torga) e Memória Breve (Angra do Heroísmo, Instituto Açoriano de Cultura, 1987),

Agora reunidos numa só obra, estes contos conhecem uma outra consistência, uma outra unidade e uma nova respiração. Através deles, Vasco Pereira da Costa, observador atento do real e herdeiro assumido da tradição oral, demonstra uma invulgar capacidade narrativa, aliada a um apurado sentido estético da escrita, ele que, trabalhador da palavra única, exata e essencial, é poeta de apreciáveis recursos sensoriais.

Não há literatura sem geografia e sem imaginário. Com raízes picarotas, Vasco Pereira da Costa, “angrense da rua Direita”, invoca e convoca, em cinematográficos flashbacks, a ilha (a real e a mitificada), e revisita um tempo distante onde habitam as primeiras emoções e sensações, os ritos iniciáticos, o despertar para o mundo e para o conhecimento das coisas, de que é significativo exemplo a narrativa “O Gibicas”.  Porque na ilha, espaço matricial e mítico, estará sempre o encanto da infância e da adolescência enquanto paraísos irremediavelmente perdidos. Nestas narrativas, pessoas, lugares, coisas e acontecimentos surgem, do fundo dos tempos, como uma aparição de ternura nos meios das ruínas da vida.


Os Contos dão precisamente conta desses fragmentos de vida vivida, de vida sentida e de vida sonhada. Trata-se, na sua essência, de uma viagem íntima do seu autor em busca de si próprio e da compreensão do outro – viagem que, envolvendo sentimentos que lhe ficaram enraizados na memória, deverá ser aqui entendida como revelação e como forma de procura e de (re)descoberta.

Numa escrita insulada e telúrica, marcada pela memória e pela imaginação (e onde o texto literário se mistura com a linguagem popular, digo, expressões do português arcaico), a que se junta capacidade transfiguradora e experimentação verbal, estamos perante narrativas marcadas por um realismo urbano que faz da enumeração e da justaposição discursiva uma das técnicas de convocação desse tempo suspenso.

Alternando rigor histórico com efabulação literária (cf. Memória Breve), o narrador desmistifica mitologias sociais, políticas e religiosas (refira-se, por exemplo, a dimensão fantástica da pomba do Espírito Santo) ligadas a vivências insulares. E acrescenta duas dimensões que são incontornáveis na escrita de Vasco Pereira da Costa: apurado sentido crítico e finíssima ironia:

Enfim, aqui, nesta ilha Terceira, desde crianças que nos convencemos de que o eixo da Terra passa a meio da Lagoa do Ginjal e que o Nilo desagua no chafariz do Alto das Covas. Mas não nos queiram mal por isso: a nossa maneira de ser grandes é alongar a nossa pequenez. Por isso, quem traz óculos é letrado, quem rima água com mágoa é Antero, quem risca dois traços é Picasso, quem sopra um canudo de cana é Pã, quem fala sem gaguejo é político, quem vai à minhoca é pescador, quem tem uma vaca… ”. (págs. 207/208).

Preocupado com o destino do homem no palco do mundo, o narrador denuncia as verdades ilusórias e renuncia às máscaras de um quotidiano alienante, e faz do que escreve o lugar de um confronto, traduzido na inquirição do real que vai construindo e desconstruindo num discurso que age e reage e que, ainda e sempre, pensa e sente…

Por conseguinte, Os Contos (escritos nos anos 70 e 80 do século passado, mas que são de uma gritante atualidade) constituem uma implacável questionação às mitologias do quotidiano: levantam questões, interrogam as teias urdidas pelo nosso passado histórico, falam do que fomos e do que somos. São 24 narrativas muito peculiares e sedutoras e que, pela sua densidade significativa, se leem com aquele “plaisir du texte” de que falava Roland Barthes,

E para que conste: a escrita de Vasco Pereira da Costa dá luzimento à literatura portuguesa.

 

   Victor Rui Dores









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