OPINIÃO: VICTOR RUI DORES | Da Casa do Comendador e da “ramalhal” figura de Eanes




Da Casa do Comendador

e da “ramalhal” figura de Eanes

 

    ao José Manuel Caldeira

 

            Corria o ano de 2015 e reinava a tranquilidade na Casa do Comendador, situada na Rua de Baixo, no lugar de S. Miguel Arcanjo, concelho de São Roque, ilha do Pico, a funcionar como empreendimento de turismo em espaço rural.

A dita Casa, senhorial, solarenga e de bela traça arquitetónica do século XIX, albergava um conjunto de ilustres personalidades (uma das quais era o dr. Álvaro Monjardino) que se encontrava na ilha morena a fim de participar, no dia seguinte e em local público, numa sessão destinada a comemorar a Revolução de Abril. Para esse evento, eu tinha aceitado o convite para prestar serviço na qualidade de apresentador e moderador.

- Com que então o meu amigo também é Ramalho? – perguntou-me o general na sala de refeições, onde já se encontrava a tomar o pequeno-almoço na companhia de D. Manuela, sua esposa, e do dr. Álvaro Monjardino, enquanto o proprietário José Manuel Caldeira, com a hospitalidade de um sorriso, fazia as honras da Casa.

Eu que ali acabara de entrar, acompanhado pelos cantautores Manuel Freire, José Barata Moura e Samuel Quedas, fiquei deveras estupefacto. Como soube ele – o primeiro Presidente da República eleito por sufrágio eleitoral e que em 1975 devolveu a democracia e a liberdade a Portugal – que eu tinha Ramalho no meu nome? Ainda hoje estou para saber, possivelmente ele terá feito alguma pesquisa internética.

Depois do pequeno-almoço, dirigimo-nos todos à varanda panorâmica da Casa do Comendador: para contemplar o efeito mágico de tanta luz, o encanto e a beleza do mar e, ao fundo, a beleza grandiosa da ilha de São Jorge.

Aproveitando a oportunidade, José Manuel Caldeira citou o Raul Brandão de As Ilhas Desconhecidas:

Já percebi que o que as ilhas têm de mais belo e as completa, é a ilha em frente – o Corvo, as Flores; Faial, o Pico; o Pico, São Jorge; São Jorge, a Terceira e a Graciosa”.

E eis que, de súbito, surge um vistoso automóvel fornecido pela Câmara Municipal de São Roque a fim de propiciar a Eanes e sua esposa um passeio pela ilha. Da viatura oficial sai um motorista de fato e gravata e que, prestimoso, se dirige ao general. Mas qual quê? Para grande espanto nosso, o homem que em 1975 devolveu a democracia e a liberdade a Portugal, dispensou a viatura camarária e o motorista e, com modéstia e serenidade, preferiu ficar connosco.

E foi numa velha carrinha Volkswagen de 9 lugares, conduzida por José Manuel Caldeira (com o general e esposa à frente e, nos bancos de trás, o dr. Álvaro Monjardino, Manuel Freire, José Barata Moura, Samuel Quedas e eu) que nos aventurámos pelas estradas da ilha do Pico. Com as inevitáveis paragens para contemplação estética: a evidência oculta dos 2.351 metros de lava, mistério e maravilha da soberba montanha do Pico; as lagoas do Capitão e do Caiado, envoltas em ténue nevoeiro; as pedras negras por entre as quais brota o vinho que chegou à mesa dos Czares; a exuberância de incensos, pinheiro e louros; a epopeia dos maroiços e da solidão petrificada…

 Pelo caminho, multiplicaram-se as conversas sobre literatura, política e as coisas da vida. Mas, para mim, o mais surpreendente foi verificar que o sisudo ex-Chefe do Estado-Maior do Exército possuía um notável sentido de humor. Rimo-nos imenso com as suas tiradas, e o dia terminou com uma lauta refeição no restaurante “O Rochedo”” (hoje, “Furna”).

No dia seguinte, e no final da sessão comemorativa de Abril, algo de inaudito viria a acontecer, segundo me confidenciou D. Manuela Eanes: o marido, que nunca dá autógrafos, fê-lo aos happy few (e eu fui um deles) que compraram os exemplares do livro António Ramalho Eanes, Olhar o Futuro, textos escolhidos desde 1986, (Alétheia Editores, 2015).



             Aproveitando a oportunidade do reencontro do General Eanes com o dr. Álvaro Monjardino (que não se viam desde 4 de setembro de 1976), a ambos ofereci uma foto, tirada naquela data na cidade da Horta, e em que figuram para a História: um, na qualidade de Presidente da República, que acabara de inaugurar a Assembleia Legislativa dos Açores, assistindo à tomada de posse do primeiro parlamento regional na “Sociedade Amor da Pátria”, primeira sede provisória daquele órgão; o outro na condição de primeiro Presidente da Assembleia Legislativa Regional dos Açores.

            Hoje, nonagenário, Ramalho Eanes, continua igual a si próprio: figura paradigmática da ética republicana, cidadão íntegro que sempre colocou o interesse público acima de tudo, e, ainda, com um prestígio que permanece intacto.

 

                                                                                                                     

  Victor Rui Dores

           








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