OPINIÃO: VICTOR RUI DORES | Recordações da «Rua Velha»

 




Recordações da «Rua Velha»

 

Naquele tempo a «Rua Velha», na cidade da Horta, era um convite à erótica reverência, aos desejos libidinosos e às promessas de gozo carnal...

Muitas eram as “mulheres da vida”, digo operárias do prazer, que tanta e tão honesta consolação ali proporcionavam à carne e ao espírito da mais variada clientela: senhores respeitáveis, comerciantes, funcionários públicos, operários, pescadores, caixeiros-viajantes e marinheiros de todas as nacionalidades.

Os mais antigos ainda chamam “cidade velha” ao território situado na freguesia da Conceição, porque foi a partir dali que nasceu e cresceu a vila e depois cidade da Horta, nomeadamente as atuais Ruas Almeida Garrett, Juiz Macedo, Bom Jesus e Miguel da Silveira.

Daí a denominação de «Rua Velha» – rota de aventuras, lugar de descobertas e porto de abrigo de prostíbulos, onde, “casa sim, casa sim” (como então se dizia), várias gerações de jovens virgens perderam o cabaço…. E este ritual de iniciação viria a prolongar-se, anos fora, em “cabarets” que, entretanto, foram abrindo as suas portas noutros espaços da cidade: “Madame Helena”, “Salão Azul” e “Mira-Mar”.

Nem sempre reinava a paz e o sossego na «Rua Velha». Com frequência, e devido aos surpreendentes efeitos do verdelho do Pico, a polícia era chamada a intervir em força, para acalmar desordens e cenas de pancadaria entre locais, marinhagem e soldadesca.

Referindo-se à «Rua Velha», o saudoso Mário Frayão várias vezes me falou do «Circo da Krika» que funcionava numa casa então em ruínas, sita na travessa que vai da Rua do Bom Jesus para a Rua Juiz Macedo. A Krika era uma mulher negra que, perante os aplausos da assistência, exibia os seus maltalhados contornos físicos e os seus dotes artísticos de bailarina... Além desta “artista”, o elenco contava ainda com o «Homem Vulcão», que vomitava fogo, os «Malabaristas» e os «Palhaços». Pessoas de todas as idades e categorias sociais acorriam, encobertamente, ao «Circo da Krika», cujo bilhete de entrada custava $50. No ambiente do espetáculo surgiam cenas hilariantes resultantes de intervenções dos assistentes com os “artistas”, dos quais, muitas vezes, resultavam desfechos trágico-cómicos.

Com todos estes atrativos, a «Rua Velha» constituiu, durante largos anos, ponto de convergência de muita e desvairada gente, nomeadamente os marinheiros dos navios que, em grande número, demandaram o porto da Horta, sobretudo durante as duas grandes guerras mundiais. Animosidade e boémia não faltavam à então cosmopolita Horta. Diariamente as guarnições animavam, e de que maneira, as ruas, as tascas, os cafés e os restaurantes da cidade.

Até que, nos anos cinquenta do século passado, um decreto do velho Estado Novo veio pôr termo à prostituição oficializada, e a «Rua Velha» deixou de ser o que era. Mágoas tamanhas para muitos, mas, obviamente, tal não constituiu o lockout da mais velha profissão do mundo.


                                                                                                                        Victor Rui Dores






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