Recordações da «Rua Velha»
Naquele tempo a «Rua Velha», na
cidade da Horta, era um convite à erótica reverência, aos desejos libidinosos e
às promessas de gozo carnal...
Muitas eram as “mulheres da vida”,
digo operárias do prazer, que tanta e tão honesta consolação ali proporcionavam
à carne e ao espírito da mais variada clientela: senhores respeitáveis,
comerciantes, funcionários públicos, operários, pescadores, caixeiros-viajantes
e marinheiros de todas as nacionalidades.
Os mais antigos ainda chamam “cidade
velha” ao território situado na freguesia da Conceição, porque foi a partir
dali que nasceu e cresceu a vila e depois cidade da Horta, nomeadamente as
atuais Ruas Almeida Garrett, Juiz Macedo, Bom Jesus e Miguel da Silveira.
Daí a denominação de «Rua Velha» – rota
de aventuras, lugar de descobertas e porto de abrigo de prostíbulos, onde,
“casa sim, casa sim” (como então se dizia), várias gerações de jovens virgens perderam o cabaço…. E este ritual de
iniciação viria a prolongar-se, anos fora, em “cabarets” que, entretanto, foram
abrindo as suas portas noutros espaços da cidade: “Madame Helena”, “Salão Azul”
e “Mira-Mar”.
Nem sempre reinava a paz e o sossego
na «Rua Velha». Com frequência, e devido aos surpreendentes efeitos do verdelho
do Pico, a polícia era chamada a intervir em força, para acalmar desordens e
cenas de pancadaria entre locais, marinhagem e soldadesca.
Referindo-se à «Rua Velha», o saudoso
Mário Frayão várias vezes me falou do «Circo da Krika» que funcionava numa casa
então em ruínas, sita na travessa que vai da Rua do Bom Jesus para a Rua Juiz
Macedo. A Krika era uma mulher negra que, perante os aplausos da assistência,
exibia os seus maltalhados contornos físicos e os seus dotes artísticos de
bailarina... Além desta “artista”, o elenco contava ainda com o «Homem Vulcão»,
que vomitava fogo, os «Malabaristas» e os «Palhaços». Pessoas de todas as
idades e categorias sociais acorriam, encobertamente, ao «Circo da Krika», cujo
bilhete de entrada custava $50. No ambiente do espetáculo surgiam cenas
hilariantes resultantes de intervenções dos assistentes com os “artistas”, dos
quais, muitas vezes, resultavam desfechos trágico-cómicos.
Com todos estes atrativos, a «Rua
Velha» constituiu, durante largos anos, ponto de convergência de muita e
desvairada gente, nomeadamente os marinheiros dos navios que, em grande número,
demandaram o porto da Horta, sobretudo durante as duas grandes guerras
mundiais. Animosidade e boémia não faltavam à então cosmopolita Horta. Diariamente
as guarnições animavam, e de que maneira, as ruas, as tascas, os cafés e os
restaurantes da cidade.
Até que, nos anos cinquenta do século
passado, um decreto do velho Estado Novo veio pôr termo à prostituição
oficializada, e a «Rua Velha» deixou de ser o que era. Mágoas tamanhas para
muitos, mas, obviamente, tal não constituiu o lockout da mais velha profissão do mundo.
Victor Rui Dores
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