OPINIÃO: VICTOR RUI DORES | Sobre Cancela d´Água e outras memórias, de Belarmino Ramos

 




Sobre Cancela d´Água e outras memórias,

de Belarmino Ramos

 

Este rapaz é de memória! – exclama a avó Helena ao ouvir-me papaguear de cor e salteado.” (pág. 69)

 

Homem de agudíssima sensibilidade e cidadão do empenhamento cívico, Belarmino Ramos é nome repartido pelo ensino, teatro, pedagogia, animação cultural, ficção narrativa e estudo da literatura oral (os poetas populares João Vital e Silveirinha, por exemplo.)

Ator brilhante que se constrói como personagem e como máscara de si próprio, foi um dos iniciadores do grupo de teatro “Alpendre”, onde tem desenvolvido intensa atividade cénica desde 1976. Assisti a todas as suas notáveis representações, mas quero aqui destacar “A Ceia dos Cardeais”, de Júlio Dantas, “O Rei Está a Morrer”, de Ionesco, “Os Sonhos do Infante” e “A Solidão da Casa do Regalo”, de Álamo Oliveira.

 Observador infatigável do real que se lhe oferece em palco, Belarmino Ramos participou em diversas séries da RTP/AÇORES, nomeadamente “Balada do Atlântico”, “O Barco e o Sonho”, “Mau Tempo no Canal” (notável o papel que faz do cego da Urzelina), “Crónicas de Gente Esquecida” (na pele do “mau da fita” José Garanha, representando, da forma mais dura e cruel, a violência doméstica), “Gente Feliz com Lágrimas” (o colérico pai Manuel), “Feliz Natal, Mariana”, “Quatro Prisões Debaixo de Armas” (no papel do popular Ti Matesinho),  entre outras.

Este ator é também o escritor de Cancela d´Água e outras memórias (Câmara Municipal de Angra do Heroísmo, 2023) que, com interesse e proveito, acabo de ler. São narrativas de sabor etnográfico (“A Matança do Porco”, “A Tosquia”, “Escola Primária”, “A eira do avô”, “O Ciclo do Milho”, e “A Cozedura do Pão de Milho”), em que o autor encontrou o leitmotiv para uma revisitação à geografia sentimental e humana da terra que lhe deu berço: Topo, ilha de São Jorge, seu microcosmo de referência e epicentro do seu roteiro afetivo.

Com efeito, esta ilha deixou em Belarmino Ramos uma memória indelével e retroativa: nela ficou o paraíso irremediavelmente perdido da infância. Ou seja, as primeiras emoções e sensações, os ritos iniciáticos e o despertar para o mundo e para o conhecimento das coisas.  É, acima de tudo, a memória maior da sua relação inocente e fascinada com os outros – os familiares, os amigos, os conhecidos.

Cancela d´Água e outras memórias capta – e bem – as tradições, usos e costumes, os ciclos e os ritos de vida de um povo rural e ruralizado, dividido entre o religioso e o profano, num tempo em que todo o tipo de autoridade estava nas mãos de três agentes: o regedor, o padre e o professor primário

De forma afirmada e autobiográfica, e numa prosa com abundantes e constantes marcas de oralidade, o autor dá-nos a conhecer retalhos vivenciais dos seus verdes anos, revisitando a sua infância insular – uma altura em que se multiplicam os símbolos do amor e da felicidade, como as figuras dos familiares, amigos e vizinhos, que surgem do fundo dos tempos como uma aparição de ternura, no meio das ruínas da vida.

O narrador interioriza as regras da vida, naquela fase em que as fantasias e as ilusões da infância ainda se não perderam no confronto com a realidade. E, ao longo das histórias, rememora pessoas (que, trabalhadoras, estabelecem entre si laços de grande fraternidade e solidariedade), evoca acontecimentos que lhe povoavam o imaginário, recordando bons tempos que não foram necessariamente tempos bons, dadas as circunstâncias da época a que se reportam as narrativas: um tempo marcado por um profundo mal-estar português, isto é, o subdesenvolvimento, a pobreza, a intolerância e todas as chagas sociais, políticas e culturais do Estado Novo.

É de antologia a minuciosa e meticulosa descrição da matança do porco. Caracterizada pela fluidez e frescura narrativas, estas são histórias apetecíveis, envoltas em atmosferas familiares e afetivas, e que resultam de experiências humanas profundamente vividas e intimamente sentidas, bem como de memórias evocadas. Há, neste livro, muitos sentimentos à flor da pele, muitos estados de alma, muitas emoções e comoções.

Daí uma escrita que projeta sobre o leitor um ideal de harmonia, esperança e happy ending. Porque, bem vistas as coisas, todas estas histórias foram escritas com os olhos da memória.

 

                                                                                                                                                                                                                                            Horta, 03/05/2025

                                                                                                   Victor Rui Dores

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