OPINIÃO: VICTOR RUI DORES | Vamos dar vida ao bar da Praça

 





Vamos dar vida ao bar da Praça

 

                                                                                           ao Rui Jorge Vasconcelos

I

Recordações iniciáticas

Nos anos 60 do século passado, éramos meninos e moços na vila de Santa Cruz da Graciosa.

Para nós, a Praça Fontes Pereira de Melo era o centro do mundo. Ali demos os nossos primeiros passos. Ali aprendemos a andar de triciclo e de bicicleta, com muito joelho esfolado à mistura... De manhã à noite, ali brincávamos, livremente, ao “saia-rato”, à “barra”, ao “burro”…






Nesse tempo eram grandes as assimetrias sociais, e muitos dos nossos condiscípulos iam para a escola descalços e de sacola de pano a tiracolo… (Por isso, a rapaziada invejava o carrinho de pedais do Rui Gregório e que era um luxo: carroçaria toda vermelha, assento amarelo, guiador branco, faróis que acendiam e vidros que rebrilhavam ao sol… Aquilo fazia um vistão lá na Praça!).

 Os menos abonados deslizavam, perigosamente, em carrinhos de ladeira pelo caminho novo do Monte da Ajuda, em vertiginosas velocidades…

Nos cafés do Salazar e do Nelson Rato, ou no bar da Praça, abastecíamo-nos de rebuçados, chocolates e outras guloseimas quando havia dinheiro para tal. Vivíamos intensamente o dia-a-dia e só três coisas nos preocupavam: o mau tempo, as reguadas do professor Louro e o óleo de fígado de bacalhau que, na escola da Rua do Porto, nos obrigavam a engolir …

Naquela altura a grande tecnologia era, para nós, a mecânica do moinho do Chico Bala, as vísceras das mesas de matraquilhos do Marítimo e o imponente Morris preto do sr. Luís Coelho.

Aliás, os automóveis não abundavam então na Graciosa. Vivia-se circularmente e nas calmas, como nos Balhos de Roda ao som da viola de mestre José Juventino. Fazíamos burricadas, no Verão. Andávamos também de cavalo e era fácil apanhar “boleia” de numerosos carros de bois. Sobretudo no tempo das vindimas, era vê-los carregados de dornas, atravessando as ruas da vila, numa chiadeira que ainda hoje ecoa nos eixos da minha memória.



Na velha cerca da Filarmónica, assistíamos, encantados, às comédias e aos espetáculos de variedades ensaiados pelo sr. Brivaldo Santos. Na velha casa de espetáculos, descobrimos o sortilégio do cinema pela mão do sr. Belchior, que projetava filmes, sonhos e maravilhas… E foi graças ao engenho técnico do sr. Ramos (que do Monte da Ajuda sintonizava, através de uma antena improvisada, a Base das Lajes e as Canárias) que vimos, a preto e branco, as imagens, irreais e etéreas, de Neil Armstrong a pisar a Lua pela primeira vez. De resto, o Monte da Ajuda foi também nosso espaço de iniciação a todos os níveis: foi lá que fumámos, às escondidas, os nossos primeiros cigarros; foi lá que trocámos os primeiros beijos…

Lançámos os primeiros olhares lúbricos às pernas das manas gémeas Teresa e Carol, que eram lindas, cheiravam à América e faziam furor a dançar o twist nos bailes de Verão…

Pedíamos a bênção ao padre Genuíno e ao padre Simões, nossos confessores e líderes espirituais, com personalidades diferentes: o primeiro alertava-nos para o pecado; o segundo dava-nos música…

Os bailes eram então animados pelos Selvagens do Ritmo. Nesse tempo os cavalheiros da vila, após o jantar, caminhavam pela calçada da Praça, horas a fio e em grupos, de mãos atrás das costas, napoleónicos, discutindo assuntos da vidinha local. Um deles era o inevitável Dr. Gregório, com seu inseparável pingalim, suas vistosas polainas e seus fatos de fino corte.

Havia os dias festivos da matança. O Natal era uma alegria e o Carnaval uma festa redonda. E, pela Páscoa, jogávamos o balamente e, pelo Espírito Santo, a bela-flor. Havia o 1º de Abril, dia em que pregávamos calotes (na altura ainda não dizíamos “petas”). E havia o 1º de Maio que ainda não era celebrado como o Dia do Trabalhador – era, sim, dia de ir comer e beber para o calhau do mar. Nesse tempo andávamos aos caranguejos, às lapas, aos búzios e às mujinhas nas poças da Calheta. E, nas Fontinhas, pescávamos salemas e carapaus…

O nosso quotidiano só era quebrado no Dia de S. Vapor – ficávamos no cais a contemplar, deslumbrados, o Carvalho Araújo, o Lima, o Cedros, o Ponta Delgada e outros navios que eram altos como igrejas. Viajávamos para a ilha Terceira no Espírito Santo, no Santo Amaro, no Terra Alta, ou no Fernão de Magalhães. E quando os desastres aconteciam, os barcos de apoio à baleação serviam de verdadeiras ambulâncias marítimas: a Estefânia Correia, o José Alexandre e a Rosa Maria.

Nas nossas casas havia dentes de baleia a servir de calço no peitoril das janelas. A baleação fazia parte do nosso quotidiano e saíamos da escola, em correrias, para assistir ao desmancho dos cetáceos, após terem sido rebocados para a baía da Barra. E jamais esqueceremos o funesto acidente ocorrido à entrada da Barra que ceifou a vida de seis baleeiros em 1967.

E não mais olvidaremos as noites de galhofa e convívio passadas no bar da Praça, popularmente conhecido por “açucareiro”. Muita conversa. Muita tertúlia. Muita vida. À volta do bar havia jogatanas de cartas, damas, xadrez e dominó… Os cavalheiros bebiam e as senhoras tricotavam. E, quando, a partir da uma da matina, deixava de haver energia elétrica, tudo acabava em poesia e petiscadas…


II

Em defesa do “açucareiro”




 Chegados a esta parte da narrativa, entremos diretamente no assunto que aqui me traz.

Destinado a ser “casa de chá”, o bar da Praça foi concebido e desenhado em 1941, pelo jovem graciosense Eugénio Medina, então com 13 anos de idade, seis anos antes de rumar a Coimbra, onde mais tarde veio a concluir o curso de engenharia.

No local do bar havia anteriormente um coreto que, por decisão da Câmara Municipal, foi demolido em 1942. Com várias sugestões e contributos entretanto acolhidos, a construção do bar iniciou-se em 1943 e, em junho de 1944, a obra estava concluída, realizada sob a orientação de mestre André Garranho.

Vivia-se em plena Segunda Guerra Mundial, num tempo de penúrias e de muita escassez, incluindo a de materiais de construção. Por isso, e porque a necessidade aguça o engenho, houve que inventar: por falta de ferro, foram desmontadas velhas camas de ferro que foram utilizadas para a construção dos pilares e sustentação do bar. Ainda lá estão e o bar mantém-se de pé.



Sim, o bar está de pé, mas sem vida… E assim é que não pode continuar. Então o que fazer? As opiniões são muitas e dividem-se. Nesta matéria, eu alinho incondicionalmente pelo diapasão do meu amigo e conterrâneo Rui Jorge Vasconcelos: demolição do “açucareiro” existente e construção de um completamente novo, de dimensões maiores, mas exatamente igual à traça original, com materiais, funcionalidades e equipamentos destinados aos dias de hoje. Como hexágono que é, tem seis hipóteses de ser eficiente no seu todo ou separadamente. Sei que o Rui Jorge tem outros contributos em mente, mas fico-me por aqui, esperando que, na devida altura e no lugar certo, ele diga da sua justiça.

O que aqui pretendo é lançar, a partir deste escrito, um sincero apelo para que as forças vivas da Graciosa se reúnam, no sentido de um debate aprofundado por forma a ser encontrada a melhor solução para o bar da Praça.

É que o danado do tempo vai passando… E nós, que fomos crianças nos anos 60 do século passado e estamos hoje muito mais vividos, mas muito menos jovens, gostaríamos de deixar este testemunho aos nossos filhos e netos: que aquele bar volte a ser o coração vivo da Praça, epicentro das nossas vidas. 





 

              Victor Rui Dores




















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