Caixeiros-viajantes
Sou do tempo dos caixeiros-viajantes,
esses vendedores ambulantes (rima e é verdade) que, vindos do Continente,
aportavam aos Açores a bordo dos navios “Carvalho Araújo” e “Lima” e, mais
tarde, no “Funchal” e “Angra do Heroísmo”. Desembarcavam, divertidos e
despachados, com uma mala em cada mão. Privei de perto com um deles nos inícios
dos anos 70 do século passado: o Cacilhas.
Os caixeiros-viajantes,
percorrendo o arquipélago a promover e a vender os seus produtos (produzidos
“lá fora”), faziam-se sempre acompanhar de vistosos mostruários onde expunham,
sobretudo, peças de vestuário, fazendas e calçado… Outros, menos reputados,
vendiam pentes, lâminas, baralhos de cartas, porta-chaves, corta-unhas,
esferográficas, isqueiros, canivetes, e até pomadas e mezinhas para todas as
doenças…
Estou a vê-los de loja em loja, de rua em rua, de praça em praça, cordiais e bem-falantes, sempre impecavelmente vestidos em fatos janotas. Muitos comerciantes locais com eles estabeleceram duradoiros laços comerciais e de amizade. Outros nem por isso, pois desconfiavam da lábia desses “continentais cheios de mania” … Os mais informados e politizados mantinham-se de pé atrás, caso o caixeiro-viajante permanecesse mais tempo na ilha: ele bem que poderia ser agente da PIDE… E, naquele tempo, todo o cuidado era pouco e as paredes tinham ouvidos...
Havia um faialense que não gostava
nada de caixeiros-viajantes, com os quais alimentava uma relação de atrito
permanente. Era o João do Talho, figura
castiça e popular, ex-talhante e proprietário, na Horta, de uma “casa de pasto”
que preparava e servia o apreciadíssimo “bife à João do Talho”, cujo segredo,
sabe-se hoje, residia na maneira de preparar a carne, que ficava de
vinha-d´alhos de um dia para o outro para atenrar.
Fazendo parte do imaginário
faialense, há um episódio (que em tempos encenei) em que são protagonistas João
do Talho e um caixeiro-viajante e que se conta da seguinte maneira:
CAIXEIRO VIAJANTE: O senhor é que é o João do Talho?
JOÃO DO TALHO (limpando as mãos no avental): Sim senhor,
para o servir.
CAIXEIRO VIAJANTE: Onde é que me posso sentar?
JOÃO DO TALHO: Numa cadeira.
(Acabrunhado, o cliente puxa
de uma cadeira e senta-se à mesa)
CAIXEIRO VIAJANTE: Venho jantar aqui ao seu famoso
restaurante, mas sabe, não posso comer nada que seja pesado. Tive uma viagem má
no “Carvalho Araújo” e só não vomitei as tripas porque não calhou. O que é que
me pode arranjar?
JOÃO DO TALHO: Bifes! É a minha especialidade!
CAIXEIRO VIAJANTE: Oh não! Bifes não! Nem vê-los! O que é
que tem mais?
JOÃO DO TALHO: Lombo de porco com feijão branco.
CAIXEIRO VIAJANTE: Oh não! Não há mais nada?
JOÃO DO TALHO: Há.
CAIXEIRO VIAJANTE: Então o quê? Peixe cozido?
JOÃO DO TALHO: Mão de vaca com feijão branco.
CAIXEIRO VIAJANTE: O quê? (a ficar desesperado) Mão de
vaca quando eu estou a pedir-lhe peixe? Arranje-me lá uma postinha de peixe
cozido, faz favor. Mas não ponha nem pingo de azeite, nem vinagre, nem batatas,
nem azeitonas, nem nada, está a perceber?
JOÃO DO TALHO: Estou a perceber perfeitamente.
Importa-se de vir aqui?
(O cliente levanta-se e vai
até à porta que dá para o exterior do restaurante)
JOÃO DO TALHO: Sabe o que é aquela casa grande ali em
cima?
CAIXEIRO VIAJANTE: Não.
JOÃO DO TALHO: É o Hospital. É lá que o vão tratar.
(João do Talho vira as
costas ao caixeiro-viajante e regressa à cozinha).
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” e
desapareceram da circulação os caixeiros-viajantes.
Igualmente
cordiais e bem-falantes, surgiram, também de fato e gravata, os delegados de
propaganda médica, fazendo marcação cerrada aos nossos clínicos e farmacêuticos.
Mas também esses (os delegados) já conheceram dias melhores. E a culpa só pode
ser das novas tecnologias da informação e da comunicação.
Victor Rui Dores


Comentários
Enviar um comentário