OPINIÃO: VICTOR RUI DORES | Caixeiros-viajantes

 




Caixeiros-viajantes

 

         Sou do tempo dos caixeiros-viajantes, esses vendedores ambulantes (rima e é verdade) que, vindos do Continente, aportavam aos Açores a bordo dos navios “Carvalho Araújo” e “Lima” e, mais tarde, no “Funchal” e “Angra do Heroísmo”. Desembarcavam, divertidos e despachados, com uma mala em cada mão. Privei de perto com um deles nos inícios dos anos 70 do século passado: o Cacilhas.

            Os caixeiros-viajantes, percorrendo o arquipélago a promover e a vender os seus produtos (produzidos “lá fora”), faziam-se sempre acompanhar de vistosos mostruários onde expunham, sobretudo, peças de vestuário, fazendas e calçado… Outros, menos reputados, vendiam pentes, lâminas, baralhos de cartas, porta-chaves, corta-unhas, esferográficas, isqueiros, canivetes, e até pomadas e mezinhas para todas as doenças…



            Estou a vê-los de loja em loja, de rua em rua, de praça em praça, cordiais e bem-falantes, sempre impecavelmente vestidos em fatos janotas. Muitos comerciantes locais com eles estabeleceram duradoiros laços comerciais e de amizade. Outros nem por isso, pois desconfiavam da lábia desses “continentais cheios de mania” …  Os mais informados e politizados mantinham-se de pé atrás, caso o caixeiro-viajante permanecesse mais tempo na ilha: ele bem que poderia ser agente da PIDE… E, naquele tempo, todo o cuidado era pouco e as paredes tinham ouvidos...

            Havia um faialense que não gostava nada de caixeiros-viajantes, com os quais alimentava uma relação de atrito permanente.  Era o João do Talho, figura castiça e popular, ex-talhante e proprietário, na Horta, de uma “casa de pasto” que preparava e servia o apreciadíssimo “bife à João do Talho”, cujo segredo, sabe-se hoje, residia na maneira de preparar a carne, que ficava de vinha-d´alhos de um dia para o outro para atenrar.

            Fazendo parte do imaginário faialense, há um episódio (que em tempos encenei) em que são protagonistas João do Talho e um caixeiro-viajante e que se conta da seguinte maneira:

CAIXEIRO VIAJANTE: O senhor é que é o João do Talho?

JOÃO DO TALHO (limpando as mãos no avental): Sim senhor, para o servir.

CAIXEIRO VIAJANTE: Onde é que me posso sentar?

JOÃO DO TALHO: Numa cadeira.

(Acabrunhado, o cliente puxa de uma cadeira e senta-se à mesa)

CAIXEIRO VIAJANTE: Venho jantar aqui ao seu famoso restaurante, mas sabe, não posso comer nada que seja pesado. Tive uma viagem má no “Carvalho Araújo” e só não vomitei as tripas porque não calhou. O que é que me pode arranjar?

JOÃO DO TALHO: Bifes! É a minha especialidade!

CAIXEIRO VIAJANTE: Oh não! Bifes não! Nem vê-los! O que é que tem mais?

JOÃO DO TALHO: Lombo de porco com feijão branco.

CAIXEIRO VIAJANTE: Oh não! Não há mais nada?

JOÃO DO TALHO: Há.

CAIXEIRO VIAJANTE: Então o quê? Peixe cozido?

JOÃO DO TALHO: Mão de vaca com feijão branco.

CAIXEIRO VIAJANTE: O quê? (a ficar desesperado) Mão de vaca quando eu estou a pedir-lhe peixe? Arranje-me lá uma postinha de peixe cozido, faz favor. Mas não ponha nem pingo de azeite, nem vinagre, nem batatas, nem azeitonas, nem nada, está a perceber?

JOÃO DO TALHO: Estou a perceber perfeitamente. Importa-se de vir aqui?

(O cliente levanta-se e vai até à porta que dá para o exterior do restaurante)

JOÃO DO TALHO: Sabe o que é aquela casa grande ali em cima?

CAIXEIRO VIAJANTE: Não.

JOÃO DO TALHO: É o Hospital. É lá que o vão tratar.

(João do Talho vira as costas ao caixeiro-viajante e regressa à cozinha).

            “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” e desapareceram da circulação os caixeiros-viajantes.

Igualmente cordiais e bem-falantes, surgiram, também de fato e gravata, os delegados de propaganda médica, fazendo marcação cerrada aos nossos clínicos e farmacêuticos. Mas também esses (os delegados) já conheceram dias melhores. E a culpa só pode ser das novas tecnologias da informação e da comunicação.

 

           Victor Rui Dores






           

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