OPINIÃO: VICTOR RUI DORES | Do futebol de rua

 




Do futebol de rua

 

         Naquele tempo não havia delinquência juvenil e quem era gordo jogava à baliza…

As famílias eram numerosas, os pais trabalhavam e as mães eram domésticas a tempo inteiro. A educação era adquirida em casa e a instrução na escola. Mas foi na rua que aprendi a defender-me, a perder o medo, a ter ação e a saber tomar decisões.

Orgulho-me de, na vila de Santa Cruz da Graciosa, ter vivido uma infância solta e à solta, entre o azul do mar e o verde da Natureza, rodeado de animais, pássaros, árvores de fruto, relvas, roupa suja, mãos cheias de terra, correrias, berros, brigas com os amigos, fisgadas aos melros pretos, brincadeiras com grilos e gafanhotos, topadas nos calhaus, joelhos esfolados, sapatos esfarrapados de jogar à bola…



            Aprendi as regras da vida a jogar futebol na rua.

Jogávamos à bola onde calhava e sabíamos gerir os nossos tempos livres – a rapaziada organizava-se em grupos desportivos, segundo critérios variáveis: os do Graciosa contra os do Marítimo; os da Vila contra os do Santo; os da Calheta contra os da Barra; os de baixo contra os de cima…

Sabíamos também o que era a autogestão. Duas pedras de cada lado faziam as balizas, e as restantes marcações do campo eram mentalmente calculadas. As faltas e os castigos eram decididos por consenso, nem sempre rápido. Mas o jogo reatava-se democraticamente, por obediência à maioria e com uns sopapos à mistura. Porém, uma nódoa empanava o pleno funcionamento autogestionário desta prática desportiva: o dono da bola. Quando este declarava: “A bola é minha! Se o meu golo não valeu, não há mais bola”, a diplomacia tinha de entrar em cena, que isto de ser-se dono da bola tinha muito muito peso num tempo de muitas e variadas penúrias económicas, e numa altura em que uma bola, das boas, custava os olhos da cara.

Jogávamos à bola sem árbitro, sem regulamentos nacionais e internacionais, sem irregularidades nas inscrições dos jogadores, sem a contratação de estrelas. Quem poderia imaginar, há mais de meio século, que isto de chutar e cabecear uma bola faria de um cidadão objeto de compra, troca e venda?

Passo-me dos carretos quando hoje vejo jogadores profissionais de futebol a dizerem, despudoradamente, que foram vendidos, comprados ou emprestados…

Não estaremos a viver o segundo momento de uma nova forma de escravatura?

 

Victor Rui Dores










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