Do futebol de rua
Naquele tempo não havia delinquência
juvenil e quem era gordo jogava à baliza…
As famílias eram numerosas, os pais
trabalhavam e as mães eram domésticas a tempo inteiro. A educação era adquirida
em casa e a instrução na escola. Mas foi na rua que aprendi a defender-me, a
perder o medo, a ter ação e a saber tomar decisões.
Orgulho-me de, na vila de Santa Cruz
da Graciosa, ter vivido uma infância solta e à solta, entre o azul do mar e o
verde da Natureza, rodeado de animais, pássaros, árvores de fruto, relvas,
roupa suja, mãos cheias de terra, correrias, berros, brigas com os amigos,
fisgadas aos melros pretos, brincadeiras com grilos e gafanhotos, topadas nos
calhaus, joelhos esfolados, sapatos esfarrapados de jogar à bola…
Aprendi as
regras da vida a jogar futebol na rua.
Jogávamos à bola onde calhava e
sabíamos gerir os nossos tempos livres – a rapaziada organizava-se em grupos
desportivos, segundo critérios variáveis: os do Graciosa contra os do Marítimo;
os da Vila contra os do Santo; os da Calheta contra os da Barra; os de baixo
contra os de cima…
Sabíamos também o que era a
autogestão. Duas pedras de cada lado faziam as balizas, e as restantes
marcações do campo eram mentalmente calculadas. As faltas e os castigos eram
decididos por consenso, nem sempre rápido. Mas o jogo reatava-se
democraticamente, por obediência à maioria e com uns sopapos à mistura. Porém,
uma nódoa empanava o pleno funcionamento autogestionário desta prática
desportiva: o dono da bola. Quando este declarava: “A bola é minha! Se o meu
golo não valeu, não há mais bola”, a diplomacia tinha de entrar em cena, que
isto de ser-se dono da bola tinha muito muito peso num tempo de muitas e
variadas penúrias económicas, e numa altura em que uma bola, das boas, custava
os olhos da cara.
Jogávamos à bola sem árbitro, sem
regulamentos nacionais e internacionais, sem irregularidades nas inscrições dos
jogadores, sem a contratação de estrelas. Quem poderia imaginar, há mais de
meio século, que isto de chutar e cabecear uma bola faria de um cidadão objeto
de compra, troca e venda?
Passo-me dos carretos quando hoje
vejo jogadores profissionais de futebol a dizerem, despudoradamente, que foram
vendidos, comprados ou emprestados…
Não estaremos a viver o segundo
momento de uma nova forma de escravatura?
Victor Rui Dores
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