Um Passado
Presente,
ou o engenho narrativo de Brenda Medina
Acabo de ler um livro que me forneceu
horas de apetecível leitura e que, na minha opinião, vale outro tanto como um
guião cinematográfico: Um Passado Presente (Cordel d´Prata
editora, 2025), da autoria de Brenda Medina, açoriana da ilha Graciosa e
enfermeira de profissão.
Sim, li este livro como se de um
filme se tratasse. E isto porque, ao longo das 190 páginas desta obra, não
consegui parar de imaginar que a autora andava com uma câmara na mão: dominando
as técnicas e os dispositivos cinematográficos do “flashback” e do “raccord”,
aplicando-os, de forma particularmente feliz, à técnica narrativa. Ou seja, esta
escritora estreante assumiria também o cargo de realizadora, construindo as
suas narrativas, imagem a imagem, plano a plano, enquadramento a enquadramento,
usando cortes na edição (do inglês “edition”, mas prefiro o termo montagem).
E que bem faz ela a montagem das suas
narrativas: baralhando os dados, introduzindo novos elementos no desenvolvimento
das histórias, retardando o desfecho das situações, obrigando, deste modo, o
leitor ao conhecido dispositivo do suspense. Ou, se quiserem, à “técnica
do iceberg”, que consiste em dizer apenas uma parte do que está acontecendo e
deixar o resto implícito, técnica esta (muito anglo-americana) que faz com que
a narrativa tenha mais impacto emocional e psicológico. Trata-se, no fundo, de
uma manipulação à maneira de Hitchcock, isto é, esse jogo ambíguo entre o que
sabemos, suspeitamos e tememos.
Por conseguinte, e como primeira nota
de leitura desta recensão, eu diria que Um Passado Presente é um
livro que pode perfeitamente vir a dar um filme, um telefilme ou uma série
televisiva. Porque está lá tudo: argumento, roteiro, diálogos, planos, ação…
E de que falamos quando falamos de Um
Passado Presente?
O livro vem rotulado de “um intenso
thriller psicológico”. Com efeito, estamos perante uma história intensa e
surpreendente, muito bem arquitetada e construída. Vejamos como e porquê.
Trinta anos após ter perdido os pais num
fatídico acidente de viação, Nina York é psicanalista, reside numa pequena casa
nos arredores de Toronto, tem como companhia uma cadela chamada Benni, conduz
um Jeep, gosta de beber vinho Chardonnay, não dispensa o seu latte,
e o seu consultório está situado no 5º andar de um prédio no centro da cidade. Ema
White é a sua assistente administrativa…
Não contarei obviamente o que se
segue, pois é ao leitor que cabe fazê-lo. Interessa reter que as personagens
que povoam o livro carregam memórias magoadas do passado, e estão conscientes
de como esse passado pesa no seu presente… São personagens de grande fundura
psicológica: frenéticas e tumultuosas, sempre prontas ao risco e à aventura, e
que lutam pela sua sobrevivência. Não fosse a literatura uma procura do sentido
da vida e uma interrogação do homem no mundo.
Acima de tudo, em Um Passado
Presente estamos perante uma capacidade narrativa e descritiva. Com
notável poder de observação e extraordinária pormenorização, Brenda Medina
lança-se numa espécie de inquérito ao subconsciente, através de monólogos
interiores, com mudanças alternadas de duas narradoras: Nina e Ema, mulheres “inteligentes
e engenhosas”, em conflito aberto, entregando-se a um perigoso jogo psicológico,
pois que Ema tem como plano maquiavélico a destruição de Nina.
Por isso, Nina e Ema, policiando-se
mutuamente, encenando atitudes e fingindo intenções, mantêm entre si diferentes
perspetivas do bem e do mal, a contas com a emoção e o desespero, o ciúme e a
vingança, o rancor e a traição, o ressentimento e a raiva, a culpa e a
desconfiança, com sonhos e angústias, perplexidades e dúvidas, medos e
contradições à mistura. Pelo meio, há um brinco de safira que se perde no
consultório da dra. York. E há flirts e encontros eróticos que envolvem
a psicanalista com Mateo e a assistente com Mike…
Nada é óbvio nesta história. De
surpresa em surpresa, de “twist” em “twist”, o enredo adensa-se – “the plot
thickens”, para utilizar linguagem de literatura policial. Vem-se depois a
saber que, afinal de contas, Mateo e Mike são irmãos gémeos, sendo que o
primeiro é um bom rapaz e o segundo um vilão da pior espécie... E para
complicar as coisas, surge em cena, após ter cumprido 30 anos de prisão, o
homem que supostamente fora o responsável pelo acidente de viação que vitimara os
pais de Nina, mas afinal não foi ele o culpado… E descobre-se que há um outro laço de relação
entre Nina e Ema… E os últimos capítulos do livro têm um ritmo alucinante, com
ações e perseguições absolutamente vertiginosas… E o resultado não é propriamente
um happy end, mas remete-nos para uma redenção.
Agradou-me sobremaneira o poder
evocativo e a capacidade de suspensão na escrita de Brenda Medina, que desce
fundo às penumbras empoeiradas do sótão da memória… Por outro lado, apreciei a
nomeação e a carga significativa dessa nomeação, bem como a construção de
diálogos, muito bem carpinteirados. De resto, toda a narrativa de Um
Passado Presente, distribuída em capítulos curtos, é caracterizada pela
fluidez e frescura narrativas, numa linguagem direta e comunicativa, sem
maneirismos e adornos desnecessários. A manutenção do suspense no fim de
cada capítulo, faz com que este seja um daqueles livros que quando se começa a
ler é impossível parar e/ou desistir.
Por conseguinte, há, na escrita desta
autora, a aguda sensibilidade de uma imaginação criadora.
Um Passado Presente é um livro, com princípio, meio e fim,
que se lê com infinito prazer.
Abram alas a Brenda Medina. Temos
escritora!
Horta, 28/07/2025
Victor Rui Dores
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