OPINIÃO: VICTOR RUI DORES | Um Passado Presente, ou o engenho narrativo de Brenda Medina

 



Um Passado Presente,

ou o engenho narrativo de Brenda Medina

 

Acabo de ler um livro que me forneceu horas de apetecível leitura e que, na minha opinião, vale outro tanto como um guião cinematográfico: Um Passado Presente (Cordel d´Prata editora, 2025), da autoria de Brenda Medina, açoriana da ilha Graciosa e enfermeira de profissão.

Sim, li este livro como se de um filme se tratasse. E isto porque, ao longo das 190 páginas desta obra, não consegui parar de imaginar que a autora andava com uma câmara na mão: dominando as técnicas e os dispositivos cinematográficos do “flashback” e do “raccord”, aplicando-os, de forma particularmente feliz, à técnica narrativa. Ou seja, esta escritora estreante assumiria também o cargo de realizadora, construindo as suas narrativas, imagem a imagem, plano a plano, enquadramento a enquadramento, usando cortes na edição (do inglês “edition”, mas prefiro o termo montagem).

 E que bem faz ela a montagem das suas narrativas: baralhando os dados, introduzindo novos elementos no desenvolvimento das histórias, retardando o desfecho das situações, obrigando, deste modo, o leitor ao conhecido dispositivo do suspense. Ou, se quiserem, à “técnica do iceberg”, que consiste em dizer apenas uma parte do que está acontecendo e deixar o resto implícito, técnica esta (muito anglo-americana) que faz com que a narrativa tenha mais impacto emocional e psicológico. Trata-se, no fundo, de uma manipulação à maneira de Hitchcock, isto é, esse jogo ambíguo entre o que sabemos, suspeitamos e tememos.

Por conseguinte, e como primeira nota de leitura desta recensão, eu diria que Um Passado Presente é um livro que pode perfeitamente vir a dar um filme, um telefilme ou uma série televisiva. Porque está lá tudo: argumento, roteiro, diálogos, planos, ação…



E de que falamos quando falamos de Um Passado Presente?

O livro vem rotulado de “um intenso thriller psicológico”. Com efeito, estamos perante uma história intensa e surpreendente, muito bem arquitetada e construída. Vejamos como e porquê.

 Trinta anos após ter perdido os pais num fatídico acidente de viação, Nina York é psicanalista, reside numa pequena casa nos arredores de Toronto, tem como companhia uma cadela chamada Benni, conduz um Jeep, gosta de beber vinho Chardonnay, não dispensa o seu latte, e o seu consultório está situado no 5º andar de um prédio no centro da cidade. Ema White é a sua assistente administrativa…

Não contarei obviamente o que se segue, pois é ao leitor que cabe fazê-lo. Interessa reter que as personagens que povoam o livro carregam memórias magoadas do passado, e estão conscientes de como esse passado pesa no seu presente… São personagens de grande fundura psicológica: frenéticas e tumultuosas, sempre prontas ao risco e à aventura, e que lutam pela sua sobrevivência. Não fosse a literatura uma procura do sentido da vida e uma interrogação do homem no mundo.

Acima de tudo, em Um Passado Presente estamos perante uma capacidade narrativa e descritiva. Com notável poder de observação e extraordinária pormenorização, Brenda Medina lança-se numa espécie de inquérito ao subconsciente, através de monólogos interiores, com mudanças alternadas de duas narradoras: Nina e Ema, mulheres “inteligentes e engenhosas”, em conflito aberto, entregando-se a um perigoso jogo psicológico, pois que Ema tem como plano maquiavélico a destruição de Nina.

Por isso, Nina e Ema, policiando-se mutuamente, encenando atitudes e fingindo intenções, mantêm entre si diferentes perspetivas do bem e do mal, a contas com a emoção e o desespero, o ciúme e a vingança, o rancor e a traição, o ressentimento e a raiva, a culpa e a desconfiança, com sonhos e angústias, perplexidades e dúvidas, medos e contradições à mistura. Pelo meio, há um brinco de safira que se perde no consultório da dra. York. E há flirts e encontros eróticos que envolvem a psicanalista com Mateo e a assistente com Mike…

Nada é óbvio nesta história. De surpresa em surpresa, de “twist” em “twist”, o enredo adensa-se – “the plot thickens”, para utilizar linguagem de literatura policial. Vem-se depois a saber que, afinal de contas, Mateo e Mike são irmãos gémeos, sendo que o primeiro é um bom rapaz e o segundo um vilão da pior espécie... E para complicar as coisas, surge em cena, após ter cumprido 30 anos de prisão, o homem que supostamente fora o responsável pelo acidente de viação que vitimara os pais de Nina, mas afinal não foi ele o culpado…  E descobre-se que há um outro laço de relação entre Nina e Ema… E os últimos capítulos do livro têm um ritmo alucinante, com ações e perseguições absolutamente vertiginosas… E o resultado não é propriamente um happy end, mas remete-nos para uma redenção.

Agradou-me sobremaneira o poder evocativo e a capacidade de suspensão na escrita de Brenda Medina, que desce fundo às penumbras empoeiradas do sótão da memória… Por outro lado, apreciei a nomeação e a carga significativa dessa nomeação, bem como a construção de diálogos, muito bem carpinteirados. De resto, toda a narrativa de Um Passado Presente, distribuída em capítulos curtos, é caracterizada pela fluidez e frescura narrativas, numa linguagem direta e comunicativa, sem maneirismos e adornos desnecessários. A manutenção do suspense no fim de cada capítulo, faz com que este seja um daqueles livros que quando se começa a ler é impossível parar e/ou desistir.

Por conseguinte, há, na escrita desta autora, a aguda sensibilidade de uma imaginação criadora. Um Passado Presente é um livro, com princípio, meio e fim, que se lê com infinito prazer.

Abram alas a Brenda Medina. Temos escritora!

 

                      Horta, 28/07/2025

                         Victor Rui Dores

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